terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O mito da austeridade europeia

Vários políticos e comentaristas, como Paul Krugman, alegam que o problema atual da Europa é a austeridade.  Mais especificamente, alegam que os gastos dos governos europeus estão insuficientes. 

O argumento padrão é o seguinte: em decorrência das reduções nos gastos governamentais, a procura na economia torna-se insuficiente.  Isso leva a um aumento no desemprego.  O desemprego piora a situação porque gera uma queda ainda maior na procura agregada, o que por sua vez provoca uma queda nas receitas governamentais e um consequente aumento em seus déficits orçamentários.  Ato contínuo, os governos europeus, pressionados pela infatigável Alemanha, aprofundam seus cortes de gastos, reduzindo novamente a procura agregada da economia ao demitir funcionários públicos e cortar gastos assistencialistas.  Isso, por sua vez, reduz ainda mais a procura agregada, gerando uma infindável espiral baixista de desemprego e miséria. 

O que pode ser feito para se sair desta espiral?  A resposta dada pelos comentaristas é simplesmente a de acabar com a austeridade, turbinando os gastos governamentais para elevar a procura agregada.  Paul Krugman chegou até mesmo a argumentar em prol de uma organização planetária contra uma invasão de alienígenas, o que induziria os governos a gastarem mais.  E por aí vão as bizarrices.  Mas esse raciocínio procede?

Em primeiro lugar, será que há realmente alguma austeridade na zona do euro?  Um indivíduo só pode ser considerado austero se ele poupa, isto é, se ele gasta menos do que ganha.  E a realidade é que não existe absolutamente nenhum país na zona do euro que seja austero.  Todos eles gastam mais do que arrecadam de receitas.

Com efeito, os déficits orçamentários dos governos da zona do euro estão extremamente altos, em níveis insustentáveis, como pode ser visto no gráfico abaixo, o qual retrata os déficits de cada governo em porcentagem de seu PIB.  Note que os números para 2012 são aqueles desejados por cada governo.

Os números absolutos para os déficits — em bilhões de euros — são ainda mais impressionantes.

Outro bom retrato da austeridade é comparar os gastos dos governos às suas respectivas receitas (o quão maior é o gasto público em relação à receita, em termos percentuais).

Imagine que um conhecido seu tenha gastado, em 2008, 12% a mais do ganhou; em 2009, 31% a mais; em 2010, 25% a mais; e, em 2011, 26% a mais.  Você diria que essa pessoa é austera?  Você diria que esse comportamento é sustentável?  Pois é exatamente isso o que o governo da Espanha tem feito.  E ele vem se mostrando incapaz de mudar de postura.  Perversamente, os comentaristas da mídia estão dizendo que é justamente essa "austeridade" a responsável pelo encolhimento da economia espanhola e pelo seu alto desemprego.

Infelizmente, austeridade é uma condição necessária para a recuperação da Espanha, da zona do euro, e de qualquer outra economia em recessão.  A redução dos gastos do governo faz com que recursos reais — que até então haviam sido absorvidos pelo estado — sejam liberados e consequentemente disponibilizados para o setor privado.  A redução dos gastos do governo faz com que novos projetos de investimento se tornem lucrativos e impede os antigos de irem à falência.

Considere o seguinte exemplo.  João quer abrir um restaurante.  Ele faz alguns cálculos.  Ele estima que as receitas do restaurante serão de $10.000 por mês.  Já os custos estimados são os seguintes: $4.000 de aluguel do espaço; $1.000 de conta de luz, água, gás e telefone; $2.000 pela comida; e $4.000 para os salários.  Com as receitas estimadas em $10.000 e os custos estimados em 11.000, João não irá começar seu empreendimento.

Agora, suponhamos que o governo se torne mais austero, ou seja, ele efetivamente reduza seus gastos.  Suponhamos que o governo extinga algumas agências reguladoras e alguns ministérios, e venda os prédios dessas burocracias no mercado. Como consequência, haverá uma tendência de queda nos preços dos imóveis e dos alugueis.  O mesmo ocorrerá com os salários.  Os burocratas demitidos sairão à procura de empregos no setor privado, e essa maior oferta de mão-de-obra exercerá uma pressão baixista sobre os salários.  Adicionalmente, as agências e os ministérios abolidos não mais estarão consumindo energia e demais serviços de utilidade pública, o que gerará uma tendência de queda no preço destes serviços.  João poderá agora alugar um espaço para seu restaurante no local onde funcionava uma destas burocracias por $3.000, dado que os alugueis estão barateando.  Suas contas de luz, água, telefone, gás etc. caem para $500, e os burocratas demitidos poderão ser contratados para lavar pratos e servir mesas por $3.000.  Agora, com as receitas estimadas em $10.000 e os custos em $8.500, o lucro esperado será de $1.500, e João poderá iniciar seu empreendimento.

Dado que o governo reduziu seus gastos, ele poderá reduzir também seus impostos, medida essa que poderá elevar o lucro líquido final de João (que agora tem de pagar um imposto de renda menor).  Graças à austeridade, o governo foi capaz também de reduzir seu déficit.  Aquele dinheiro que até então era emprestado ao governo para financiar seu déficit poderá agora ser emprestado para João para que ele faça seu investimento inicial: transformar as antigas instalações burocráticas em um restaurante.  Com efeito, um dos principais problemas de países como a Espanha é que a poupança real dos cidadãos está sendo utilizada pelo sistema bancário não para financiar empreendimentos privados, mas sim para financiar o governo.  Empréstimos estão praticamente indisponíveis para empresas privadas porque os bancos utilizam seus fundos para comprar títulos do governo a fim de financiar o déficit público.

No final, tudo se resume à seguinte questão: quem deve determinar o que deve ser produzido e como?  O governo, que usa recursos alheios para proveito próprio (como expandir a burocracia por meio de agências reguladoras, ministérios, programas assistencialistas, guerras etc.), ou empreendedores em um ambiente concorrencial, batalhando entre si para satisfazer os desejos dos consumidores com produtos cada vez melhores e mais baratos (como João, que agora utiliza em seu restaurante parte dos recursos anteriormente imobilizados no aparato estatal)?

Se você crê que a segunda opção é a melhor, então a austeridade é o caminho certo.  Mais austeridade e menos gastos governamentais significam menos recursos para o setor público (menos burocracia, menos agências reguladoras, menos ministérios) e mais recursos para o setor privado, que os utiliza para satisfazer os desejos dos consumidores (mais restaurantes).  Austeridade é a solução para os problemas da Europa e dos EUA, uma vez que ela estimula o crescimento sólido e reduz os déficits governamentais.

Um PIB menor?

Mas não seria verdade que, ao menos temporariamente, a austeridade reduz o PIB e joga a atividade econômica em uma espiral descendente?

Infelizmente, o PIB é um número bastante enganador.  O PIB nada mais é do que o valor de mercado de todos os bens finais e serviços produzidos em um país dentro de um dado período. 

Há dois motivos por que um PIB menor nem sempre é um mau sinal.

O primeiro motivo está relacionado à questão dos gastos governamentais.  Imagine um burocrata do governo que emite alvarás de funcionamento.  Quando ele nega a autorização para um determinado empreendimento, quanta riqueza foi destruída?  Como calcular?  Seria por meio das receitas esperadas desse empreendimento ou por meio de seus lucros esperados?  E se o burocrata involuntariamente tiver impedido o surgimento de uma inovação que poderia evitar o desperdício de inúmeros recursos escassos para a economia?  
É difícil dizer qual o tamanho da destruição de riqueza provocada pelo burocrata.  Poderíamos simplesmente, e arbitrariamente, pegar seu salário anual de $120.000 e subtraí-lo da produção privada da economia.  O PIB seria menor.

No entanto — está sentado? —, o exato oposto ocorre na prática.  Os gastos governamentais contam positivamente para o PIB.  O salário do burocrata — e sua atividade destruidora de riqueza — eleva o PIB em $120.000.  Isso significa que, se a agência reguladora desse burocrata for fechada e ele for demitido, então o imediato efeito dessa austeridade será uma redução de $120.000 no PIB.  No entanto, essa redução no PIB é um ótimo sinal para a produção privada e para a satisfação dos desejos dos consumidores.

Segundo, se a estrutura de produção se encontra distorcida após um período de crescimento econômico aditivado pela expansão artificial do crédito, a reestruturação da economia também irá gerar uma queda temporária no PIB.  Com efeito, o PIB só poderia ser mantido se a estrutura de produção permanecesse inalterada.  Mas a permanência dessa estrutura distorcida e artificial representaria um consumo de riqueza, e não uma produção.

Se a Espanha ou os EUA tivessem continuado utilizando a mesma estrutura de produção vigente durante seus anos de crescimento, eles teriam continuado construindo a quantidade de imóveis que construíram em 2007.  Vários recursos escassos teriam sido desperdiçados nesses projetos, mais empresas estariam falidas no futuro e haveria menos capital disponível na economia.  A reestruturação de uma economia que foi artificialmente distorcida pelo crédito farto e barato direcionado ao setor imobiliário requer justamente um período de encolhimento do setor imobiliário.  Mais especificamente, tal setor terá de fazer um menor uso dos fatores de produção, liberando mão-de-obra e capital para outros setores.  E estes fatores de produção devem ser transferidos para aqueles setores onde eles estão sendo demandados com mais urgência pelos consumidores. 

A reestruturação não é instantânea; ela é organizada e conduzida por empreendedores em um processo dinâmico e competitivo que é incômodo, fatigante e que leva tempo.  Durante esse período de transição, quando os empregos naqueles setores artificialmente inchados da economia estão sendo destruídos, o PIB tende a cair.  Essa queda no PIB é apenas um sinal de que a necessária reestruturação da economia já está ocorrendo.  A alternativa seria continuar produzindo a mesma quantidade de imóveis produzida em 2007.  Se o PIB não caísse acentuadamente, isso significaria que a expansão econômica destruidora de riqueza estaria continuando exatamente como estava nos anos 2005—2007.

Conclusão

A austeridade do governo é uma condição necessária para a prosperidade privada e para uma rápida recuperação econômica.  O problema da Europa (e dos EUA) não é o excesso, mas sim a escassez de austeridade — ou melhor, a sua completa ausência.  Uma queda no PIB pode ser um indicador de que a necessária e saudável reestruturação da economia já está ocorrendo.




3 comentários:

Pedro Miguel disse...

Concordo na generalidade, mas discordo em pequenos pormenores.

É a minha análise e não estarei mais certo ou errado que os outros, apenas a minha opinião.

Sou super defensor da austeridade e espero em breve fazer um pequeno artigo sobre austeridade, mas para mim, austeridade não é igual a poupar, pode ser igual a um défice mínimo.
Considero isso, porque numa economia controlada e em crescimento, em que a dívida cresce menos que o país, ela é diluída e acaba por se dissipar.

Segundo, acabar com a burocracia é essencial. Todos sabemos que há funcionários públicos que atrasam para que não seja perceptível que não são necessários. Acabar com a burocracia judicial e na função pública é essencial para acreditar o país.
Para quem não sabe, burocracia significa poder do escritório. O poder não devia estar no escritório, o escritório devia apenas ajudar a fluir o que tem que andar.
Agora, a simplificação teórica que o despedimento da função pública vai diminuir o défice no imediato não é real. Será preciso sustentar o desemprego e as menores contribuições durante algum tempo.
E enquanto o défice não descer, os bancos não vão ter fundos para financiar o João.

Uma situação que me irrita bastante e que com tempo também gostava de escrever, é o crédito que dão ao Krugman. Krugman é um brilhante economista, é prémio Nobel, mas não percebe patavina de ciclos económicos e tudo o que tem vindo a comentar nos media. Krugman ganhou o prémio Nobel pelo seu grande contributo na análise do comércio internacional.

Anónimo disse...

E se deixasses de ser sofista? Vê-se mesmo que és economista e o mundo funciona às mil maravilhas numa folha Excel!!! O João em período de recessão tinha clientes para facturar 10.000? No teu mundo Excel, concerteza, mas a realidade é bem diferente. Basta olhar para a situação actual em que as pessoas despedidas tentam montar negócios que acabam por ser um problema a que têm de pôr fim com agravamento da sua situação! Deixa de vender gato por lebre!

Unknown disse...

Caro anónimo, entendo que o senhor se opõe, portanto, à austeridade não é assim?

Bem começo por afirmar que a realidade o desmente. Nos últimos 15 anos, tivemos um grande acesso a financiamento fácil e barato. Como seria de esperar a procura iria subir e pelas suas teorias iriamos crescer abruptamente e enriquecer ao nível da Alemanha ou da Suécia. Nada mais errado. Na última década crescemos em média abaixo de 1%/ano. Gastamos dinheiro em inutilidades e não a apoiar o setor produtivo e tecnológico.
O exemplo dado pelo autor do artigo não é exatamente o ideal para o nosso caso, uma vez que o restaurante trabalha para o mercado interno. Mas dou-lhe o exemplo do setor exportador... se o estado reduzir impostos e despesa, os custos das empresas vão descer e muito, rendas mais baratas, energia mais barata, menos contribuições. Quem iria comprar os produtos? Os chineses, os brasileiros, os russos, os árabes que estão com grande aumento do seu poder de compra.

Obrigado por ler os Viriatos!

Cumprimentos,
Bernardo Botelho Moniz