"Enquanto a fantasia dos ideólogos não descobriu a soberania do povo, o povo era feliz. Trabalhava nos campos, nas oficinas e nos seus misteres: poetava; cronicava; descobria novas terras, novos mundos, novos mares; erguia as pirâmides do Egipto; criava a arquitectura grega; escrevia a Eneida e a Divina Comédia; enchia as páginas do martirológio cristão; formava os impérios dos Carlos Magnos e dos Carlos quintos; elaborava a sínteses filosóficas de Aristóteles e S. Tomás; numa palavra: atingiu os altos cumes da civilização. Essa maravilha das maravilhas que é Europa da Idade-Média, quando a Cruz e a Espada aliadas e irmanadas são o símbolo máximo da Ordem máxima, foi obra do Povo, — mas não do Povo Soberano.
Mas um dia, começaram a dizer ao Povo que ele era soberano. E quando o Povo, convencido da sua soberania, na ilusão de que lhe era possível efectivá-la, a reclamou, e o Poder constituído e legítimo se viu obrigado a reconhecer-lha, — o Povo talhou por suas próprias mãos, a mais pesada, a mais execranda das tiranias.
Nunca o Povo foi tão escravo como no dia em que começou a ser soberano! E quanto mais soberano se julga, tanto mais escravo na realidade, ele é.
O que é a soberania do Povo? A soberania do Povo é a tirania irresponsável e anónima. É a tirania dos partidos políticos. É a tirania das manobras dos clubs e dos grupos. É a tirania do acaso eleitoral. É a tirania do voto conquistado ou pela compra, ou pela vigarice, ou pela ameaça, ou pelo interesse mesquinho de uma coterie. É a tirania do Número contra a Razão. É a tirania do Número contra a Inteligência. É a tirania do Número contra o Saber. É a tirania do Número contra a Bondade. É a verdadeira tirania da Força contra o Direito.
A soberania do Povo é a negação do próprio Povo, porque é a sua sujeição à mais cobarde das tiranias: a do Número irresponsável e anónimo.
Quem governa, no Povo soberano? O voto. Quem decide sobre a Guerra e sobre a Paz? O voto. Quem resolve os problemas da Instrução, da Higiene, da Defesa nacional, do Fomento, das Colónias, da Ordem, da Moral? O voto. Quem julga o Passado do Povo? O voto. Quem prepara o Futuro do Povo? O voto. Mas quem é o voto? O voto é a mistificação legal. Quem governa, no Povo soberano, é a mistificação."
Alfredo Pimenta
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