Os homens que marcam os séculos são normalmente homens que vivem fora dos séculos. Nunca são contemporâneos, nunca acompanham o que passa, mas conseguem a proeza de viver no tempo para além do próprio tempo, como se este não existisse.
Salazar é a grande figura do século XX português. Salazar é A figura do século XX português. E sendo-o, conseguiu ser também uma das grandes figuras da história além fronteiras. Não por acaso, quase 40 anos passados da sua morte, e o mesmo tempo de proibição da sua memória, foi eleito pelos telespectadores portugueses “O maior português de sempre”. Um exagero, claro está, comparando incomparáveis como Afonso Henriques, Pedro Hispano, Afonso de Albuquerque, ou Dom João VI, mas talvez mais significativo quando desde a sua morte política tudo foi feito para apagar a sua obra. Primeiro por Marcello Caetano e seus correligionários, depois pela nova ordem revolucionária.
Dificilmente haverá português mais mitologizado do que ele. E dificilmente se consegue uma figura histórica portuguesa com o seu impacto nos nossos últimos 200 anos de História. Cá dentro e lá fora.
Hoje, passado quase meio século da sua morte Salazar “está na moda”. Nunca como hoje houve tantas obras escritas e produzidas sobre si, sobre a sua obra (sobretudo a política, mas também a teórica), sobre os seus gostos mundanos, sobre as suas relações, a sua correspondência, etc. Qualquer visita a uma livraria mostra como é um produto que vende e vende bem, coisa mais notável quanto é alvo de demoníaco mitificação como poucos o são.
Ao contrário dos que nos (des)governam há 40 anos, Salazar pouco foi um entusiasta da Democracia. Deplorou a curtíssima experiência parlamentar que teve e arrumou aí qualquer ilusão que ainda tivesse sobre o parlamentarismo. Conhecia bem os clássicos à direita e à esquerda, não por ouvir falar ou por obras de aforismos, mas por os ter lido e reflectido. E não se limitando a isso, procurou percebê-los em confronto com o ethos português.
Acompanhou os grandes críticos da democracia liberal do seu tempo assim como os grandes críticos dos socialismos, nomeadamente os do marxismo. Nunca viveu alheado dos grandes debates do seu tempo, e sempre procurou tomar posição neles, e tomar posição original. Leu e foi lido, dentro e fora, e alcançou o estatuto de pensamento original na crítica dos regimes políticos contemporâneos. Foi de resto um académico, e mesmo a sua acção política teve sempre por enraizamento essa ideia de academia e de estudo e reflexão académica que conhecia e onde tinha crescido na Lusa Atenas.
Operou o maior milagre económico-social da nossa História, tanto maior quantas as condições em que o realizou foram verdadeiramente ímpares. Os anos do seu governo significaram o maior crescimento económico nacional e do rendimento nacional sem aumento da dívida (bem pelo contrário, alcançou os níveis mais baixos de dívida do Estado pelo menos desde a instauração dos regimes constitucionais afrancesados – e certamente uns dos mais baixos da nossa História) dos últimos 200 anos. Boa parte da rede básica de infraestruturas nacionais que ainda hoje serve o país foi também resultado dos seus famosos planos de fomento: estradas, caminhos de ferro, portos, aeroportos e aeródromos, hospitais, escolas, liceus, universidades, laboratórios do Estado, museus, sistemas de regadio, barragens, equipamentos militares, etc. A lista é infinda, seja na (então) Metrópole seja no (então) Ultramar, onde pela primeira vez desde as invasões liberais o Estado recuperou o controlo e administração de vastas áreas antes concessionadas a companhias mercantis coloniais estrangeiras.
Foram também os seus governos que estabilizaram ou deram condições à primeira formação de uma classe média na nossa História constitucional. Fosse no sector privado com o aparecimento de grande grupos industriais/comerciais/
A recuperação das contas nacionais significou uma recuperação da autonomia e da soberania portuguesa a níveis que haviam sido perdidos desde a independência do Brasil em 1822. E as potências europeias e mundiais aprenderam a ter de lidar de igual para igual com o governo português, que deixou de estar sujeito às tradicionais pressões e chantagens na política internacional. Churchill encontrou um aliado à altura e exasperou-se com o cínico líder do governo português que, enquanto apregoava o amor à velha aliança com uma mão, exigia contrapartidas não habituais no relacionamento entre os dois países desde D. João VI com a outra. E conseguiu-as.
É também por isso que é o único político português do século passado que fez admiradores e leitores da sua obra além fronteiras. Precisamente porque não se limitou a obedecer a ordens, mas compreendeu que só é escravo quem lhe veste as grilhetas.
É essa, de resto, um dos seus impressionantes ensinamentos para a actualidade, apesar da nossa situação económica ser hoje bastante mais desastrosa do que o era no fim da primeira experiência republicana, que também nos ia custando a independência e o sangue.
Uma das facetas que não lhe é normalmente reconhecida é a de habilíssimo diplomata e negociador. É normalmente reconhecida essa tarefa internacionalmente, nomeadamente na manutenção da neutralidade portuguesa no dificílimo cenário da Segunda Grande Guerra (com coisas tão abissais como território nacional invadido e ocupado), mas não lhe é tão reconhecida a mestria no encontro do compromisso entre as diferentes, divergentes e tantas vezes antagónicas facções dentro do regime e da União Nacional. Monárquicos, republicanos, católicos, maçons, judeus, progressistas, capitalistas, conservadores, operários, tradicionalistas, integralistas, socialistas, liberais, todos foram geridos para resultar na difícil, mas duradoura, união do regime. Como Penélope, fez e refez essa teia vezes sem conta, equilibrando tudo e todos debaixo do mesmo ideal.
Ao contrário de outros regimes seus contemporâneos, Salazar não foi o ditador chefe da nação. Não foi vitorioso militar como Franco ou Fidel. Não foi líder de massas como Mussolini, Mao ou Peron. Não foi eleito como Churchill, nem foi líder resistente e/ou carismático como De Gaulle, Nehru ou Nasser. Também não foi rei, nem regente, nem Chefe de Estado (apenas o foi interinamente aquando da morte do Presidente Carmona). Salazar foi sempre Presidente do Conselho de Ministros de um regime presidencialista, onde o Chefe de Estado tinha a chave do poder constitucional, podendo demiti-lo a qualquer momento. Mais: enquanto Carmona foi vivo, Salazar dividiu com o Presidente a popularidade, e só com Craveiro Lopes (curiosamente aquele que terá estado mais próximo dos seus inimigos) ele se tornou incontestável.
Uma incontestabilidade a que não se deveu o seu carisma frente às massas, que era nulo. Os seus discursos são pérolas de boa oratória, mas difíceis de serem seguidos pelas massas pouco habituadas à explanação académica. Mas que se deveu a ter feito uma coisa raríssima na política europeia desde Péricles: viveu e agiu de acordo com o que defendeu e com a sua consciência.
É daí – creio- que nasce o crescente interesse dos mais jovens pela sua figura. Por encontrarem nele essa "extravagância" de viver de acordo com o que processava, coisa rara no seu tempo, inexistente hoje em dia. Talvez fosse eco ainda da sua juvenil vivência seminarista, ou das leituras dos clássicos latinos, mas fez do exemplo o garante ético da moralidade oficial.
Dizendo que para governar um país bastava uma coluna de deve e haver, viveu toda a vida do seu ordenado, tendo escrúpulos gigantescos em aceitar presentes ou benesses, quer fossem privadas ou públicas. Os museus nacionais detém peças que lhe foram oferecidas e que, em vez de irem avolumar o seu património privado, foram encaminhadas para os organismos públicos. Insistiu toda a vida em pagar as despesas com a parte privada da Residência Oficial e em pagar o arrendamento do Forte de São Julião da Barra quando o usava para férias, o mesmo acontecendo com as despesas com a viatura oficial aquando das estadias no Vimieiro natal.
Habituados pelo actual regime a ter tudo e todos a viver às nossas custas, o seu exemplo brilha ainda mais luminoso pelo profundo respeito que tinha pelo dinheiro e pelos bens que não eram dele. Coisa que também se nota na escolha dos melhores arquitectos, decoradores, “designers” (avant la lettre), pintores, escultores, etc, para as obras públicas, coisa a que, sendo alheio directamente, encorajou, apoiando sempre quem os escolheu e o convenceu a aceitar. Mesmo quando os valores lhe pareciam acima do que esperava e achava aceitável…
Não acreditava que a Democracia pudesse ser útil ao país e nunca o escondeu. Achava (e bem, como hoje sabemos) que o comunismo era dos maiores perigos e das grandes tragédias da história humana, e tudo fez para impedir que Portugal sofresse os horrores que sofreram os povos a ele sujeitos. Olhava com desconfiança para a importação de ideologias exógenas, e nesse sentido Iimitou tanto os liberais como os nacional-socialistas que acabaram – não estranhamente – todos juntos na Oposição “Democrática” (aspas minhas dada a salada russa que lá se juntou, as suas práticas e os seus objectivos).
Herdou uma cultura política e social de violência extrema da Primeira República, com instituições censórias indiscriminadas, golpes e golpelhos de Estado, bombismo e terrorismo, onde até os “heróis do 5 de Outubro” haviam sido massacrados, e um presidente e um primeiro-ministro abatidos por grupos rivais. Os que apontam a violência política do Estado Novo escondem sempre que essa violência (que existiu) foi infinitamente mais branda do que a da Primeira República e que mesmo a Censura e a PIDE (ambas com raízes na Primeira República) foram paulatinamente controladas e integradas na ordem estatal e constitucional, passando a ter objectivos estáveis e controlo hierárquico.
Talvez por isso o número de mortos é – como os estudos demonstram – ao nível das democracias liberais do seu tempo, e a anos-luz das ditaduras do seu tempo. O mesmo acontecendo com a Censura, implacável sobre os marxismos-leninismos, mas mais preocupada com a cristalização da moral pública do que com o resto – daí que tantos espaços de abertura tenham existido, alguns mesmo autorizados e seguidos pelas autoridades, como foi o caso dos cineclubes e das autorizações para visionamento restrito de filmes censurados para o grande público.
A real história disso está por fazer, depurada das mitologias que a envolvem.
Num tempo que foi a era dourada da imprensa mundial, esta foi uma das capas da grande imprensa internacional que fez, explicando aos americanos quem era aquela estranha figura que governava o pequeno-grande país do Minho a Timor, um pequeno-grande país maior do que Europa, onde as mulheres receberam o direito de voto e de serem eleitas bem antes da maioria do mundo ocidental, onde os negros/mulatos/macaenses/
É uma belíssima fotografia de um homem singular, o anti-Pombal, conquanto levou a vida a fazer-nos recuperar do atraso e dos erros daquele e dos seus adoradores. Hoje, dia em que se cumpre a memória do seu aniversário natalício e em que recebia cravos vermelhos, a sua flor favorita, que o amortalharam para a Eternidade numa fina ironia (ou coincidência para quem acredite nesses acasos pagãos) da História.
LRP