José Oliveira – o engenheiro caldense que tratou do funeral de Salazar
José Oliveira é um caldense que teve contacto próximo com António de Oliveira Salazar. Nas vésperas do 41º aniversário da morte do ditador (a 27 de Julho de 1970), o agora aposentado engenheiro técnico electrotécnico, de 84 anos, contou à Gazeta das Caldas o seu percurso de vida e como integrou o restrito círculo de pessoas que acompanharam Salazar, desde que este caiu da cadeira até à sua morte.
José Oliveira ingressou no Instituto Técnico Militar dos Pupilos do Exército em 1939. O seu pai tinha morrido nesse ano, e José, na altura com 12 anos, queria estudar mas não tinha dinheiro. Porém, como o seu pai tinha sido sargento da Marinha, o jovem caldense tinha direito a fazer um curso gratuitamente nos Pupilos do Exército. E assim foi. Em 1944, ao completar o Curso Complementar de Indústria, transitou para os cursos de engenharia, onde estudou Máquinas e Electrotecnia até 1948.
Mas foi em 1952 que José Oliveira deu o passo que o colocou mais perto de vir um dia a conhecer Salazar. Não que acalentasse tal desejo, mas a vida dá muitas voltas. O certo é que nesse ano foi admitido na Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, como agente técnico de engenharia de electrotecnia, iniciando assim uma carreira de funcionário público num tempo em que esta era uma profissão segura.
“Os meus colegas electrotécnicos que estavam na Direcção-Geral reservavam-se muito (para não dizer que tinham medo) a ir a locais de maior respeito, nomeadamente à Presidência do Conselho, de onde todos fugiam de ir”, recorda José Oliveira. O engenheiro começou então a ir em serviço à residência oficial do Presidente do Conselho, para realizar serviços de manutenção técnica de comunicações. “Eu, talvez por estar habituado a uma vida de tropa, não tinha receio. Então o Director-Geral encarregou a minha secção desses serviços”, contou. O então engenheiro fazia estas diligências, mensais ou quinzenais, acompanhado por um desenhador da sua secção.
Apesar do contacto próximo com o chefe do governo, José Oliveira não tinha uma relação muito pessoal com Salazar. “Era sempre o bom dia, boa tarde, ou “há alguma coisa estragada?”. Estava sempre interessado em saber porque é que lá estávamos” diz José Oliveira.
Salazar, conhecido pela sua disciplina e espírito de poupança, procurava saber se estas operações não iriam ser muito dispendiosas. Segundo o caldense, o Presidente do Conselho chegava a dizer que “se custar dinheiro, não se faz!”. O chefe do governo procurava também não falar muito sobre este serviço, porque se tratavam de questões de segurança, a nível das comunicações entre membros do governo e destes para o exterior, que não deviam passar por mais ninguém.
A queda de um ditador
O homem que marcou o século XX português tinha por hábito mudar-se para o Forte do Estoril nos meses de Verão, e a 27 de Julho de 1968, o ritual repetiu-se. No dia 3 de Agosto, por volta das 9h00 da manhã, Salazar desce ao terraço do forte para ser tratado pelo pedicuro Augusto Hilário, a quem pede o Diário de Notícias que trazia. Com o jornal na mão, Salazar deixa-se cair numa das cadeiras de lona que havia no terraço e o peso do seu corpo fá-la tombar para trás. O chefe do governo bate com as costas e a cabeça na laje.
Aqui começava o princípio do fim do velho ditador. Inicialmente não se detectou nada de grave, mas as dores de cabeça ocasionais revelaram um grave hematoma cerebral que teve que ser operado.
“Quando ele caiu da cadeira, nos meses de Verão, eu ia e vinha de Lisboa para as Caldas todos os dias de comboio”, esclarece José Oliveira. Américo Tomás, Presidente da República neste período, anunciou a exoneração de Salazar do cargo de Presidente do Conselho, por impossibilidade deste em continuar a exercer a função. Contudo, foi decidido que Salazar iria continuar na residência oficial, numa dependência adaptada para o efeito. “Ainda fui ao Hospital da Cruz Vermelha para ver como é que ele estava instalado a fim de reproduzirmos um quarto com os mesmos meios que ali havia” conta o caldense.
Nos dois anos que se seguiram da vida de Salazar, este chegou a estar ligado a alguns aparelhos depois de sair do Hospital. José Oliveira tinha a tarefa de fornecer energia eléctrica ao local através de um gerador que teve de ser cedido pelo Ministério do Exército, para que os aparelhos continuassem a funcionar em caso de falha de energia.
Mas mesmo depois das melhoras do ex-Presidente do Conselho, este continuou a residir no local. “Ainda deu umas passadas pelo jardim, um dia pediu um carro para ir dar um passeiozinho, e esteve assim dois anos” conta José Oliveira.
A continuidade do engenheiro electrotécnico ao serviço da casa oficial, e o respectivo envolvimento com o quotidiano de Salazar, foi muito motivada pelo hábito já criado das diligências à residência oficial. Havia ainda a questão do secretismo, pois o ditador não chegou a ter conhecimento da sua exoneração, pensava que ainda governava e era conveniente que assim continuasse a pensar.
“Eu e o meu colega tínhamos reuniões preparatórias em que nos alertavam para essa situação” salienta José Oliveira.
Responsável pelas cerimónias fúnebres
Às 9h15 do dia 27 de Julho de 1970 foi declarado o óbito de António de Oliveira Salazar. “Já se pensava que ele ia morrer em breve e começou-se logo a preparar o cortejo, o percurso, onde iria ser tratado o corpo, etc.”, esclarece o engenheiro caldense. José Oliveira fazia parte do grupo que organizava a cerimónia, juntamente com o director do Instituto de Medicina Legal, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, e um outro colega seu, responsável pela parte da cerimónia que haveria de decorrer no Mosteiro dos Jerónimos. O engenheiro caldense era apenas responsável pela parte em que o corpo saía da residência oficial em direcção à Assembleia Nacional (actualmente Assembleia da República), embora no dia do funeral esta última localização tivesse sido eliminada do percurso.
Mas José Oliveira acabou por ter que tratar também das exéquias nos Jerónimos. “Telefonaram-me de madrugada para as Caldas e fui logo para Lisboa no primeiro comboio. Cheguei de manhã à estação do Rossio, estavam lá dois Pides à minha espera, que me disseram «o senhor vá depressa para o seu gabinete porque o homem já morreu» “, contou.
O seu colega que estava responsável pela organização das cerimónias fúnebres no mosteiro encontrava-se nesta altura nos Açores e não conseguiria regressar a tempo de preparar tudo. “Na noite em que se tratou da decoração, das comunicações e tudo o mais, houve uma pequena multidão que resolveu fazer fila à porta do mosteiro para serem os primeiros a ver o corpo”, conta o caldense.
As responsabilidades de José Oliveira nas cerimónias de Estado do ditador acabaram quando o corpo foi transportado para um apeadeiro ferroviário improvisado em frente ao mosteiro dos Jerónimos. Dai o funeral seguiu num comboio especial para Santa Comba Dão onde Salazar foi enterrado.
Curiosamente, a carruagem que transportou a urna esteve há alguns anos no Bombarral prestes a ser demolida, mas foi à última da hora salva para o Museu Nacional Ferroviário.
O 25 de Abril de 1974
No dia 25 de Abril de 1974 José Oliveira encontrava-se em casa quando o seu director lhe telefona e diz: “não saia de casa e ouça a rádio”. Os militares estavam na rua e o golpe de Estado depressa se transformou numa revolução. O regime fora deposto. “Só no outro dia é que vim ao Terreiro do Paço, onde trabalhava, e voltei ao ritmo normal de trabalho como funcionário público”, conta José Oliveira. Mas no dia 8 de Maio, o contínuo do seu local de trabalho vem ter com ele quase a chorar. “Estão ali tropas para levar o senhor!”, disse.
Mas afinal não eram mais do que um grupo de militares da Marinha e da Força Aérea, que queriam a sua ajuda para entrar na residência oficial do Presidente do Conselho, que estava abandonada há uma semana. Sem chaves, e com as fechaduras encravadas pela Pide, acabaram por entrar só depois de ter arrancado uma porta.
Quando questionado se a queda do regime mudou alguma coisa no seu trabalho ou na forma como as pessoas o tratavam, a resposta do engenheiro caldense é simples: “Não senhor. Tinha a confiança de toda a gente”.
Nos meses atribulados que se seguiram ao 25 de Abril, as suas responsabilidades técnicas na residência oficial levaram-no a coexistir com as personagens do novo regime. Um deles foi Álvaro Cunhal, que teve uma curta passagem por um governo provisório como ministro sem pasta e que ocupou um gabinete muito especial…
Especial? “Aquela sala esteve preparada para fazer o embalsamamento de Salazar. Tinha uma protecção com lona, um tanque de formol e quem estava indigitado para fazer o embalsamamento era o director do Instituto de Medicina Legal com a sua equipa”, conta José Oliveira.
Mas como os materiais eram alugados e o homem nunca mais morria, acabou por se decidir devolver tudo à procedência. O regime planeara a morte do ditador, mas este pregava-lhe uma partida, e embora já não mandasse, ditava ainda as suas leis sem o saber.
Um dia José Oliveira, que adquirira alguma confiança com o então ministro Álvaro Cunhal, contou-lhe que o gabinete que este ocupava tinha estado preparado para receber e embalsamar o cadáver de Salazar, ao que o habitualmente sério dirigente comunista retorquiu com umas raras e gostosas gargalhadas.
E que memória guarda José Oliveira do seu homónimo Salazar? “Ele era educadíssimo e nunca se zangava com ninguém. Mas também quando se zangava não ligava mais à pessoa”, confessa José Oliveira.
Aposentado da sua profissão na administração pública há já 18 anos, e inactivo profissionalmente desde 2009, José Oliveira fez um percurso de vida que atravessou praticamente todo o Estado Novo, apanhou a Revolução de Abril e ainda as negociações para entrada na CEE, nas quais também participou como representante do Estado Português.
Nos 41 anos em que esteve ao serviço da Administração Pública, não foi apenas junto de Oliveira Salazar que o trabalho do engenheiro caldense mereceu destaque. Dentro da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais o engenheiro técnico electrotécnico fez parte da equipa que dirigiu as obras de remodelação da Residência Oficial do Chefe de Estado, em Belém, nos anos 50. Também dirigiu a remodelação da instalação eléctrica da Assembleia Nacional, bem como esteve a cargo de empreitadas semelhantes na residência oficial do Presidente do Conselho, e posteriormente, do Primeiro Ministro.
Também realizou obras nas Caldas da Rainha, como foi o caso do Hospital Termal e da então Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro.
A visita de Salazar ao Museu José Malhoa
António de Oliveira Salazar tem um episódio curioso de uma vinda não anunciada às Caldas da Rainha. Conta José Oliveira que o Presidente do Conselho estava de passagem pela cidade, acompanhado da sua governanta Maria e das suas duas raparigas protegidas. Decidiu ir ao museu José Malhoa, e chegado ao local, tratou de comprar bilhetes. Logo a conservadora do museu, Maria Helena Coimbra, se apressou a dizer que o senhor Presidente não tinha que pagar. Mas Salazar perguntou “De que vive o museu? Não é das entradas?”.
Vendo que o chefe do governo fazia questão em pagar, a conservadora decidiu que as meninas e a senhora por sua vez não pagariam. E quando ia começar a visita ao museu, quis seguir pelo lado esquerdo em vez do direito, seguindo a ordem comum de visita. Quando interpelado por este facto, Salazar perguntou: “não se importa que eu ao menos uma vez vá pela esquerda?”.
Óscar Morgado
omorgado@gazetadascaldas.pt
22 de Julho, 2011
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