terça-feira, 14 de julho de 2015

«A Cidade Antiga»


«...os gregos não formavam ideia nítida sobre a liberdade; entre eles, os direitos individuais careceram sempre de garantias. Sabemos por Tucídides, a quem certamente não podemos acusar de demasiado amor pelo governo democrático, que no domínio da oligarquia o povo estava exposto a muitos vexames, condenações arbitrárias, execuções violentas. (...) Os gregos nunca souberam conciliar a igualdade civil com a desigualdade política. (...) Se além disso nos lembrarmos de que entre os gregos o Estado tinha poder absoluto, e que nem um só direito individual lhe podia resistir, compreenderemos então o enorme interesse que havia para cada homem, mesmo para o mais humilde, em possuir direitos políticos, isto é, em fazer parte do governo. Sendo tão omnipotente e soberano colectivo, o homem só podia ser alguma coisa quando membro dessa soberania. A sua segurança e a sua dignidade consistiam nisso. Queria possuir direitos políticos, não para ter verdadeira liberdade, mas, pelo menos, para possuir algo que pudessem ter em consideração.
(...) Quando através da série de revoluções os homens conseguiram a igualdade, já não existindo lugar para se combaterem por princípios e direitos, guerrearam-se por interesses. Este novo período da história das cidades seguiu de muito perto o estabelecimento da democracia; nas outras, apareceu só depois de muitas gerações terem podido calmamente governar. Mas todas as cidades, cedo ou tarde, caíam em tão lastimáveis lutas.
(...) A democracia não suprimiu a miséria; pelo contrário, tornou-a mais acentuada. A igualdade nos direitos políticos frisou mais flagrantemente ainda a desigualdade das condições.
(...) Nas épocas precedentes respeitara-se o direito de propriedade, porque este tinha por fundamento a crença religiosa. Como cada património estava ligado ao culto e se considerava inseparável dos deuses domésticos da família, ninguém pensara em ter o direito de despojar o homem do campo que lhe pertencia. Mas, na época a que as revoluções nos conduziram, estas velhas crenças estão abandonadas e a religião da propriedade de todo desaparecera. A riqueza já não é o terreno sagrado e inviolável. Já não aparece como dom dos deuses, mas fortuna do acaso. Sentem o desejo de apoderar-se das terras, tirando-as aos que as possuem, e esse desejo, parecendo antigamente grave impiedade, começa a manifestar-se como legítimo. Já não se vê o princípio superior que consagra o direito de propriedade; cada homem sente apenas a sua própria necessidade e por esta mede o seu direito.
Já dissemos como a cidade, principalmente entre os gregos, tinha poder sem limites, sendo-lhes a liberdade desconhecida, e como o direito individual nada era perante a vontade do Estado. Daqui resultava poder a maioria dos sufrágios decretar a confiscação dos bens dos ricos, e os gregos não viam nisso nem ilegalidade nem injustiça. Aquilo sobre que o Estado se tinha pronunciado era o direito. Esta ausência de liberdade individual foi a causa de desgraças e de desordens para a Grécia. Roma, que respeitava um pouco mais os direitos do homem, sofreu por conseguinte menos» 

(Fustel de Coulanges, «A Cidade Antiga»).

Partilhado por Miguel Bruno Duarte

1 comentário:

Euro2cent disse...

Olha o senador a puxar a brasa à sardinha.