sábado, 19 de março de 2016

A mais verdadeira e a mais eficaz de todas as acções


"À medida, porém, que a civilização evolui, sempre no sentido dum maior poderio técnico, a noção de sagrado vai-se atenuando; todos os actos da vida passam a ser civis, desligando-se de qualquer ideia de sobrenatural; o mundo aparece, não como um conjunto de sinais de Deus, que o homem venera, teme ou respeita, e de que participa pelas formas sacramentais, mas um domínio laico, como uma propriedade a seu inteiro dispor e em que ele exerce todos os direitos de usar, gozar e abusar, com que se define a noção clássica de propriedade. O homem vive, desde então, não para adorar o que vê, como outrora, não para fazer de todos os seus actos uma tentativa de reconquistar o paraíso perdido, mas para se aproveitar do que existe, para dominar, para se afastar cada vez mais da inocência da Idade do Ouro, com o risco de nunca poder reencontrar o caminho; [...] cada vez mais o homem se tem posto e considerado como dono do mundo, com o direito de destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transformar a vida inteira nalguma coisa que não tem outro fim senão o de sustentar a sua vida material. A vida tornou-se laica e tornou-se feroz, implacável e, o que é pior ainda, sem sentido nenhum que eleve a vida além da vida. É uma série de momentos em que se produz para se consumir e se consome para se poder produzir de novo. As relações do finito com o infinito, da parte com o todo parecem, em instantes mais críticos, correr o risco de se perder por completo; o acto gracioso da oferta aos seres fraternos e aos seres superiores, a gratuitidade de viver, desaparecem rapidamente de um mundo que se dessacraliza. Costuma dizer-se que o progresso técnico superou o progresso moral, mas o que há na realidade é que o progresso técnico se fez à custa do fundo moral da humanidade, do seu fundo divino; e as grandes épocas de crise são exactamente aquelas em que o progresso técnico é o mais elevado possível e a consciência moral uma luz mínima que parece a cada momento ir apagar-se de todo no fragor das tempestades económicas e políticas. [...] Todo o esforço dos grandes pensadores, dos grandes artistas, dos grandes cientistas, dos grandes chefes religiosos, tem sido exactamente o de impedir que a centelha do sentimento do sagrado se apague de todo neste mundo. [...] Temos hoje à nossa disposição os meios técnicos de dominar a fome e a miséria e de dar ao homem uma liberdade sem limites para exprimir a sua verdadeira natureza; [...] só a fé no homem, nas possibilidades divinas do homem, nos pode levar de novo à Idade do Ouro, tal como a representaram os poetas: tempo de fraternidade e de amor, sem angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de absorção em Deus, tempo de acção mental, a mais verdadeira e a mais eficaz de todas as acções."
- Agostinho da Silva, A Comédia Latina , in Estudos sobre Cultura Clássica, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2002 (publicado pela 1ª vez em 1952, Brasil)


1 comentário:

Euro2cent disse...

> o progresso técnico se fez à custa do fundo moral da humanidade

A parte gaga é que os nossos progressistas não têm a mínima noção disto.

Estamos a gastar a herança que muitas gerações nos deixaram. Aceleramos um carro com o depósito na reserva, "running on fumes" como belamente exprimem os anglo-parlantes.

Estamos a uma unha negra de nos tornarmos animais técnicos, cevando os instintos mais básicos pelos meios mais sofisticados.

À beira do abismo, prestes a dar o passo em frente. Avante.