quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Estado Disto Tudo

by 
Skippers-Canyon-Road-New-Zealand
O Raspanete
Em boa hora, a Comissão Europeia anunciou que Portugal foi colocado em monitorização específica, por desequilíbrios económicos e orçamentais excessivos. Convém que ninguém se esqueça, governo e oposição, que ainda falta muita austeridade para corrigir o descalabro a que chegamos em 2011 e que nos obrigou a pedir ajuda às “instituições”.
Em ano de eleições, o governo quer gritar vitória ao intervalo e a oposição diz que vai mudar a estratégia para o segundo tempo. Ambos mentem.
Ninguém ganha jogos ao intervalo e ainda falta um largo caminho para reequilibrar as contas públicas. O que nos espera nos próximos anos é mais austeridade. Não confundam, não é a continuação da austeridade: é mais austeridade.
O governo, ao longo destes quatro anos, percorreu parte do caminho e ninguém lhe pode tirar o mérito. Não o fez da melhor maneira – avançou pelo lado da receita, mais que pelo lado da despesa – mas recuperou alguma da credibilidade perdida, e soube aproveitar as ajudas europeias que nos permitem juros extraordinariamente baixos, tornando o enorme endividamento ligeiramente mais suportável.
Portugal foi mais Irlanda que Grécia, é certo, mas entenda-se o que Bruxelas nos está a recordar. Portugal está sobre endividado, o endividamento continua a crescer e continuará a crescer enquanto Portugal tiver contas públicas deficitárias.
A Dívida
Da esquerda à direita, nos partidos, nos jornais e até na imprensa económica, muitas pessoas inteligentes e com boa opinião  ainda não compreenderam este simples facto: a dívida pública é, basicamente, o défice acumulado.
Sim, o crescimento económico ajuda e a recessão agrava, se usarmos como métrica a dívida em % do PIB, em vez do valor nominal da dívida em euros. As vendas de activos abatem à dívida, pode haver variações de liquidez que confundam as contas e havia muita dívida escondida que agora vai aparecendo a pouco e pouco. Tudo isto é verdade, mas verdade é também esta: a dívida volumosa deve-se, principalmente, à incapacidade dos diferentes governos em controlar a despesa pública corrente.
Ou seja a soma dos gastos do estado em salários da função pública, pensões, subsídios vários, educação e saúde, administração pública, defesa, ciência, cultura e tudo o resto em que o estado se mete foi, ano após ano, superior à capacidade do estado em angariar receitas. E a tudo isto soma-se uma fatia cada vez maior de juros dos empréstimos que o estado foi pedindo ano após ano para manter e quase sempre aumentar o seu âmbito de actuação. O monstro.
Enquanto houver défice, a dívida cresce e em 2015 Portugal vai ter um défice público à volta de 3%, cerca de 5000 milhões de euros. Isto significa que o estado vai pedir emprestado em 2015 cerca de 5000 milhões de euros. Algumas possíveis privatizações poderão ajudar a descer este número, mas as privatizações não são recorrentes. Ajudam no ano em que são feitas, mas não resolvem o problema estrutural.
Ano após ano, Portugal não tem que pedir apenas o montante necessário para cobrir o défice. Tem também que pedir o suficiente para substituir a dívida que vai vencendo. Dependendo das diferentes maturidades dos diversos empréstimos pedidos no passado, há anos em que se necessita de mais e outros em que o alívio é maior.
E não se iludam com notícias como estas. Portugal paga ao FMI contraindo nova dívida nos mercados para a substituir.
Atualmente, fruto do comportamento de Portugal nestes 4 anos e da política do BCE, as taxas de juro estão historicamente baixas. Mas este momento é verdadeiramente singular. As taxas voltarão a subir e quando acontecer, não mais nos financiaremos a 2%. Como se viu em 2011, as taxas, quando sobem, sobem rapidamente. E quando isso acontecer, a nossa vida vai ser novamente muito complicada.
Também, por isso, convém acelerar o processo de ajustamento.
O Primeiro Objectivo
As instituições entraram em Portugal em 2011 e emprestaram-nos dinheiro com 3 diferentes destinos:
  • Uma parte era para substituir a dívida que ia vencer nos anos seguintes por dívida nova, mais barata e com maiores maturidades (as taxas a 10 anos estavam acima dos 10%, em Junho de 2011)
  • Outra parte destinava-se a suportar os défices públicos dos anos seguintes, no seu percurso descendente até 3%.
  • Uma outra fatia pretendia ajudar os bancos portugueses para que estes respeitassem os limites de solvabilidade impostos por Basileia 3.
A troika cumpriu a sua missão e o dinheiro já entrou na totalidade. Mas a troika, por si só, não resolveu o nosso problema estrutural. O primeiro e principal objectivo do processo de ajustamento em curso é estancar o crescimento da dívida pública portuguesa.
Bruxelas veio recordar-nos que nem ao fim desse primeiro passo chegámos. Esse momento só é conseguido quando chegarmos a défice zero. Essa deveria ter sido a missão de vida do governo de Passos Coelho e Paulo Portas. O que não deixa de ter alguma ironia é que esse primeiro passo vai ser concluído apenas durante o mandato de António Costa e do Partido Socialista. 2017, talvez. Com mais austeridade.
Mas de qualquer forma, a responsabilidade dos governos de Sócrates e Passos Coelho será sempre bastante diferente. Ao governo socialista, ninguém lhe tira a responsabilidade pela bancarrota. A Passos podemos apenas culpar de não ter sido capaz de nos tirar deste buraco. E a verdade é que ainda não nos tirou.
A Corrida de Fundo
E depois de chegarmos a défice zero, acaba-se a austeridade? Não. Depois, precisamos de reduzir o stock de dívida, por vários motivos.
Precisamos reduzi-lo porque este nível de endividamento não resiste a uma crise dos mercados financeiros como a que aconteceu em 2008 – e essa crise aparecerá, inevitavelmente – e as taxas de juro anormalmente baixas costumam ser um primeiro indício de uma bolha em formação.
Precisamos reduzi-lo porque a dívida é uma pesada herança que deixamos aos nossos descendentes. Dívida hoje são impostos amanhã. É uma vergonha para a nossa geração deixar um tão elevado nível de endividamento.
Temos que reduzir a dívida porque o seu excesso é inibidor de crescimento.
Só devemos sentir algum alívio quando Portugal gerar excedentes orçamentais recorrentes, nunca inferiores a 2% ou 3%. Admitindo que temos como objectivo que Portugal volte a um endividamento equivalente a 60% do PIB, quantos anos teremos de austeridade? Com um crescimento médio de 1%, Portugal necessitará de excedentes orçamentais de 2% durante 24 anos, ou de 3% durante 18 anos. Com crescimento médio de 2% ao ano, estes números descem para 18 anos e 15 anos, respectivamente.
Uma bancarrota do estado tem custos elevados. E esta, na melhor das hipóteses, resolve-se nunca antes de 2 ou 3 décadas.
Falta muita austeridade? Falta. Para atingirmos um excedente de 2%, Portugal necessita de cortar despesa ou aumentar impostos em cerca de 8000 milhões de euros.
Isto quer dizer que, vindos dos quase 20 bi de défice de Sócrates, apenas percorremos cerca de 60% do caminho que é necessário percorrer. É trágico.E mais trágico ainda, Portugal não pode crescer a este ritmo com a actual carga fiscal. Nos próximos tempos até podemos ver algum crescimento, sempre anémico, e potenciado pela baixa do preço do petróleo e pela diminuição lenta do desemprego e o acordo TTIP pode ajudar. Mas a correção do défice pelo lado da receita, com novos aumentos de impostos, a única que o TC permite, se bem que melhore as contas públicas no curto prazo, elimina a esperança do crescimento no longo prazo.
Os Obstáculos
Ou seja, à nossa frente temos um caminho de mais austeridade. É um caminho cheio de obstáculos e está armadilhado em muitos sentidos. Um obstáculo é a completa irresponsabilidade do Tribunal Constitucional. Por muitos livros de macroeconomia ou de contabilidade pública que os juízes tentem ler, o TC continua a ter uma maioria de juízes politizados e desconhecedores do buraco em que ainda estamos metidos.
Outro obstáculo é o risco populista de Syrizas à lusitana. O Syriza grego já teve o seu choque com a realidade. Completamente impreparados, desconhecedores do funcionamento dos mercados financeiros e das regras europeias, amadores, entraram de leão e sairam de sendeiro.
Não menos relevante é o contínuo discurso da ‘alternativa’ que jornalistas e políticos irresponsáveis continuam a debitar na praça pública e que tem um forte eco na opinião pública. O tempo vai mudando os sound bytes – já quase ninguém fala na aposta no crescimento – como se crescer fosse uma decisão que se escreve num qualquer Decreto-Lei – a teoria da espiral recessiva também já foi à vida, mais as folgas orçamentais que tiveram eco nas primeiras páginas dos jornais de referencia.
Mas se todos esses disparates desapareceram do discurso político, outros nascem todos os dias – agora alimentados pela esperança da intelligentsia lusa nos Syrizas e nos Podemos.
E depois disto tudo, se queremos ser ricos e jogar na primeira divisão temos que criar todos os mecanismos que tornem Portugal um país atraente e competitivo. E, goste-se ou não, crescimentos sustentados no longo prazo implicam coisas como um regime fiscal e competitivo estável, credível e compreensível, legislação laboral flexível, baixos impostos sobre capital e menor progressividade fiscal. Tudo o oposto do discurso corrente sobre a sociedade e sobre o estado, o oposto do que a Europa se está a tornar. Nada fácil.
As Alternativas
Há alternativas? Há, duas. O default, dentro ou fora do euro. Ambas implicam um forte empobrecimento do país. Mas essas ficam para outra oportunidade.

Sem comentários: