Que espécie de despotismo devem temer as nações democráticas
Autor Alexis de Tocqueville
Observei, durante minha temporada nos Estados Unidos, que uma situação social semelhante à dos americanos poderia oferecer singulares facilidades à implementação do despotismo, e mostrei, ao regressar à Europa, como a maior parte dos nossos príncipes já se tinham servido das idéias, dos sentimentos e das necessidades que essa mesma situação social fazia surgir, para estender a esfera do seu poder. Isso me levou a crer que as nações cristãs talvez acabassem por sofrer alguma opressão, semelhante à que outrora pesou sobre vários povos da Antiguidade. Um exame mais detalhado do assunto e cinco anos de meditações novas não diminuíram em nada os meus temores, mas mudaram o seu objeto.
Jamais se viu, nos séculos passados, um soberano tão absoluto e tão poderoso que tenha tentado administrar sozinho e sem recorrer a poderes secundários, todas as partes de um grande império; nem sequer um tentou submeter indistintamente todos os seus súditos aos detalhes de uma norma uniforme, nem desceu até junto de cada um deles, para regê-lo e conduzi-lo. A idéia de semelhante empreendimento jamais se apresentara ao espírito humano, e se a algum homem terá ocorrido concebê-la, a insuficiência de luzes, a imperfeição de processos administrativos e, sobretudo, os obstáculos naturais que a desigualdade suscita o teriam logo detido na execução de desígnio tão vasto.
Sabemos que, na época do maior poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham ainda conservado costumes e hábitos diversos: embora sujeitas ao mesmo monarca, a maior parte das províncias era administrada separadamente; eram cheias de municipalidades poderosas e ativas e, embora todo o governo do império estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre, quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da existência individual fugiam ordinariamente ao seu controle. É verdade que os imperadores possuíam um poder imenso e sem contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e a empregar para satisfazê-los toda a força do Estado; muitas vezes, ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um cidadão os bens ou a vida; a sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número; prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e contida.
Parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, teria outras características: Seria mais amplo e mais brando, e desagradaria os homens sem atormentá-los. Não duvido que, nos séculos de luzes e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente consigam concentrar todos os poderes públicos em suas mãos apenas, e penetrar mais habitual e mais profundamente no círculo dos interesses privados, como jamais o pode fazer qualquer daqueles da Antiguidade.
Mas essa mesma igualdade, que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os homens se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser mais humanos e mais suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou grandes riquezas, a tirania, de certa forma, fica sem ocasião ou teatro de ação. Como todas as fortunas são medíocres, as paixões são naturalmente contidas, a imaginação limitada, os prazeres simples. Essa moderação universal se faz sentir no próprio soberano e detém dentro de certos limites o impulso desordenado dos seus desejos.
Independentemente dessas razões, tiradas da própria natureza da situação social, poderia acrescentar muitas outras, fora de meu tema; desejo, porém, manter-me dentro dos limites que me fixei.
Os governos democráticos poderão tornar-se violentos e cruéis em certos momentos de grande efervescência e de grandes perigos; mas essas crises serão raras e passageiras. Quando penso nas pequenas paixões dos homens de hoje em dia, na brandura dos seus costumes, na extensão das suas luzes, na pureza da sua religião, na brandura da sua moral, nos seus hábitos laboriosos e ordenados, na austeridade em que se mantêm quase todos, no vício como na virtude, não temo que encontrem em seus chefes tiranos, mas antes tutores.
Não creio, pois, que a espécie de opressão de que povos democráticos se acham ameaçados se assemelhe a algo do que a precedeu no mundo; nossos contemporâneos não poderiam encontrar na lembrança a sua imagem. Em vão procuro uma expressão que reproduza exatamente a idéia que tenho e que a encerre; as antigas palavras, despotismo e tirania não convêm de maneira alguma. O fenômeno é novo; é preciso, pois, defini-lo, já que não posso dar-lhe um nome.
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo; vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana, quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais tem pátria.
Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu prazer e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria os homens para a idade viril; mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem, desde que não pensem senão em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe alta tirar-lhes inteiramente, senão o incomodo de pensar e a angústia de viver?
É assim que, todos os dias, torna menos útil e mais raro o emprego do livre arbítrio; é assim que encerra a ação da vontade num pequeno espaço e, pouco a pouco, tira a cada cidadão até o emprego de si mesmo. A igualdade preparou os homens para todas essas coisas, dispondo-os a sofrer e muitas vezes até a considerá-las como um benefício.
Depois de ter tomado cada um por sua vez, dessa maneira, e depois de o ter petrificado sem disfarce, o soberano estende o braço sobre a sociedade inteira; cobre a sua superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não seriam capazes de vir à luz para ultrapassar a multidão; não esmaga as vontades, mas as enfraquece, curva-as e as dirige; raramente força a agir, mas constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas impede de nascer, nunca tiraniza mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue e desumaniza, e afinal reduz cada nação a não ser mais que rebanho de animais tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor.
Sempre acreditei que essa espécie de servidão regulada e pacífica, cujo retrato acabo de traçar, poderia conjugar-se mais facilmente do que imaginamos com algumas das formas exteriores da liberdade, e que não lhe seria impossível estabelecer-se à própria sombra da soberania do povo. Nossos contemporâneos são constantemente trabalhados por duas paixões inimigas: sentem eles a necessidade de ser conduzidos e o desejo de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro desses instintos contrários, esforçam-se por satisfazer ao mesmo tempo a ambos. Imaginam um poder único, tutelar, todo-poderoso, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização e a soberania do povo. Isso lhes dá algum descanso. Consolam-se por ser tutelados, pensando que eles mesmos escolheram seus tutores. Todo indivíduo suporta ser fixado, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo, que segura a ponta da corrente.
Nesse sistema, os cidadãos por um momento abandonam a dependência, para indicar o seu senhor, e depois voltam a ela. Hoje em dia, há muitas pessoas que se acomodam muito facilmente a essa espécie de compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo, e que pensam ter garantido suficientemente a liberdade dos indivíduos, quando é ao poder nacional que a entregam. Mas isso não me basta. A natureza do senhor me importa muito menos que a obediência.
Entretanto, não quero negar que semelhante constituição seja infinitamente preferível àquela que, depois de ter concentrado todos os poderes, viesse a colocá-los nas mãos de um homem ou de um corpo irresponsável. De todas as diferentes formas que o despotismo democrático poderia tomar, essa seria sem dúvida a pior. Quando o soberano é eleito ou vigiado de perto por uma legislatura realmente eletiva e independente, a opressão que faz com que os indivíduos sofram às vezes é maior; mas é sempre menos degradante, porque cada cidadão, enquanto contido e reduzido à impotência, pode ainda imaginar que, obedecendo, só se submete a si mesmo, e que é a uma das suas vontades que sacrifica todas as demais. Compreendo igualmente que, quando o soberano representa nação e depende dela, as forças e os direitos que se tiram a cada cidadão não servem somente ao chefe do Estado, mas aproveitam ao próprio Estado, e que os particulares tiram algum fruto do sacrifício que fizeram da sua independência a bem do público. Criar uma representação nacional num país muito centralizado é, pois, diminuir o mal que a extrema centralização pode produzir, mas não é destruí-lo.
Bem sei que, dessa maneira, conserva-se a intervenção individual nas questões mais importantes; ela não é menos suprimida nas pequenas e nas particulares. Esquecemo-nos de que é sempre no detalhe que é perigoso escravizar os homens. Por minha parte, seria levado a julgar a liberdade menos necessária nas grandes que nas menores coisas, se pensasse que jamais se poderia ter a certeza de uma sem possuir a outra.
A sujeição nas pequenas questões se manifesta todos os dias e se faz sentir indistintamente a todos os cidadãos. Embora não os leve ao desespero, contraria-os constantemente e os leva a renunciar ao uso da vontade. Pouco a pouco, oblitera o seu espírito e enfraquece a sua alma, ao passo que a obediência, que é devida apenas em reduzido número de circunstâncias muito graves, mas muito raras, só de longe em longe denota a servidão, e só a faz pesar sobre certos homens. Em vão encarregaríamos aqueles mesmos cidadãos que tornamos tão dependentes desse poder central de escolher de vez em quando os representantes desse poder; esse uso tão importante, mas tão curto e tão raro, do seu livre arbítrio, não impedirá que percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que não venham a cair assim, gradualmente, abaixo do nível da humanidade.
* Publicado originalmente em A Democracia na América (vol II, parte IV, cap. 6, 1840).