quarta-feira, 2 de julho de 2014

A esquerda verdadeira

Sempre houve, mas agora parece haver mais: falo dos que, nos partidos e nos jornais, se dizem “verdadeiramente de esquerda”. São aqueles para quem Tony Blair, por exemplo, nunca foi de esquerda, nem Matteo Renzi, nem sequer António Guterres (porque é católico), nem até António José Seguro (porque não se chama José Sócrates). Durante anos, o principal executor deste género de exclusivismo foi o reverendo Francisco Louçã. Agora, porém, o tribunal tem novos juízes: os fiéis e enteados do socratismo. São eles que agora decidem quem é e não é de esquerda. E com eles, veio esta tese: a de que na política tudo é “narrativa”, e a “narrativa” é tudo.
A dívida pública, a sustentação do Estado social, a adaptação da economia ao euro, o modo como o governo de Sócrates acabou num resgate internacional – não são questões que possam justificar pontos de vista diferentes, mas que seja preciso encarar e discutir como problemas genuínos. Nada disso: são problemas falsos, cuja mera enunciação revela que alguém é de direita ou se deixou endrominar pela direita. Ser “verdadeiramente de esquerda” é negar tudo isso. A dívida pública? Não é um problema nosso, mas dos credores. O Estado social? Basta defendê-lo contra os neoliberais. O euro? Tem de ser adaptado à economia portuguesa, e não o contrário. O governo de Sócrates? Um milagre sabotado por Passos Coelho. Quem disser o contrário, é de direita.
De facto, esta “esquerda verdadeira” também acredita na realidade. Não na realidade que é limitada pelas opções dos outros, não na realidade que exige estudo, não na realidade que impõe compromissos, mas numa realidade que é só desejos gratificados e facilidades à mão. O país está cheio de dinheiro — é só distribuir. A Europa deseja ardentemente ajudar Portugal — é só pedir. Mas por “ideologia” — e só por “ideologia”–, o governo não distribui e também não pede.
A “esquerda verdadeira” habita num mundo de conto de fadas. É um mundo onde a natureza é pródiga, as pessoas são boazinhas e solidárias, o dinheiro abunda, e a riqueza espera apenas por um sinal para crescer – mas é também um mundo onde, por um incompreensível golpe do destino, um pequeno bando de mafarricos tomou conta do poder, e agora impede a natureza de nos dar tudo, divide as pessoas, esconde o dinheiro, bloqueia a ajuda europeia e impede o crescimento económico. Esses seres maléficos chamam-se “neoliberais”. E como se combate os neoliberais? Com “narrativas”, contando histórias.
A quem é que a “esquerda verdadeira” quer contar histórias? Antigamente, falava para a “classe operária”. Agora, dirige-se com insistência à “classe média”. Sabe que o ajustamento cansou os contribuintes, os pensionistas, os funcionários públicos. Convenceu-se de que todos eles estão disponíveis para se deixarem embalar pela lenga-lenga de que o ajustamento é um sacrifício desnecessário. A “esquerda verdadeira” não tem ideias, diz apenas o que julga ser mais adequado para representar os interesses ofendidos e as expectativas frustradas. E quando as “vitórias são pequenas” (como no caso do PS) ou as derrotas são grandes (como no caso do BE), volta à “narrativa”, à necessidade de impor a “narrativa”.
No fundo, a “esquerda verdadeira” representa forças políticas que disputam o poder, mas não sabem de facto como governar nas condições vigentes. Por isso, concebem o mundo segundo um idealismo grosseiro, como capricho e manipulação. A “esquerda verdadeira”, no fundo, quer manter influência, mas não deseja responsabilidades. Portugal precisa obviamente de outra esquerda.

Rui Ramos aqui


2 comentários:

Anónimo disse...

Portróical não precisa nem de direita nem de esquerda!

Deixem de pensar como escravos submissos!

Diogo disse...

«O governo não distribui?»

Caro Rui Ramos, os governos de direita e de esquerda (ou CENTRÃO: PS + PSD + (cds)) não têm feito outra coisa:

O Centro Cultural de Belém, a Expo, O Europeu de futebol com a construção de 10 estádios inúteis, o aeroporto de Beja (com um avião por ano), os submarinos, as PPPs, as SWAPs, a nacionalização do BPN (já vai em mais de 6 mil milhões de euros), a ajuda ao BPP, os 78 mil milhões para recapitalizar os bancos, as privatizações de monopólios naturais lucrativos (ex: PT, REN, CTT, etc.), etc., etc., etc.


Portanto, caríssimo Ramos, os governos de esquerda e de direita não têm feito outra coisa senão distribuir. Só é pena que vão buscar o dinheiro aos mais pobres para o meter nos bolsos dos mais ricos.


Fernando Madrinha - Jornal Expresso de 1/9/2007:

[...] "Não obstante, os bancos continuarão a engordar escandalosamente porque, afinal, todo o país, pessoas e empresas, trabalham para eles. [...] os poderes do Estado cedem cada vez mais espaço a poderes ocultos ou, em qualquer caso, não sujeitos ao escrutínio eleitoral. E dizem-nos que o poder do dinheiro concentrado nas mãos de uns poucos é cada vez mais absoluto e opressor. A ponto de os próprios partidos políticos e os governos que deles emergem se tornarem suspeitos de agir, não em obediência ao interesse comum, mas a soldo de quem lhes paga as campanhas eleitorais." [...]