Em Portugal multidões de
indignados descobriram que uma Democracia que não dá dinheiro afinal não
presta; pouco ou nada importa a Liberdade. E descobriram a deprimente
passividade da sociedade civil.
Superado que foi o
“imperialismo” clássico como “estádio superior do capitalismo”, eis que o mundo
chegou à fase da globalização, o seu nome contemporâneo. Trata-se de um novo
sistema económico, alicerçado numa revolução tecnológica, em que indivíduos,
grupos, empresas, países, regiões e até continentes competem livremente entre
si à escala planetária por um mercado teoricamente infinito, numa busca
incessante e voraz pela maximização do lucro, ou seja, pela riqueza. Para que o
mercado nunca se acabe, o capitalismo desencantou uma absoluta novidade. Não se
limita a oferecer-nos o que queremos e possivelmente precisamos: cria em nós o
desejo de adquirir os produtos que inventa para nos vender. Deste modo, a
procura não tem fim, tanto mais que, se a globalização tem criado legiões de
multimilionários, por outro lado tem vindo a retirar centenas de milhões de
pessoas da pobreza extrema, abrindo-lhes, pela primeira vez na história, a
possibilidade de ascenderem na vida e se converterem em novos consumidores.
Nunca foi tão verdadeira a
máxima cantada há já algumas décadas por Lisa Minelli: “Money makes the world
go round”! Bem vistas as coisas, porém, sempre foi assim, embora em épocas
remotas a riqueza se traduzisse bem menos em dinheiro, que de resto escasseava,
do que em propriedade privada, avidamente cobiçada tanto pelo pequeno camponês
como pelo grande senhor; tanto pelo pobre como pelo rico. Eis uma constante que
se observa desde tempos imemoriais.
Não faltou quem imaginasse um
estado paradisíaco, perdido nas brumas do alvor de uma Humanidade ainda
fundamentalmente generosa, desprendida dos bens materiais e disposta a viver
alegremente num regime do mais abnegado comunitarismo e da mais rigorosa
frugalidade. Mas Engels nunca soube explicar por que motivo este estado
celestial acabaria com o tempo a ser envenenado por uns quantos indivíduos
malévolos, cujo egoísmo impôs a apropriação privada de uns bocados de terra a
que quiseram chamar “seus”. E Rousseau, um crente na bondade natural do homem,
também não arranjou explicação satisfatória para a existência de proprietários
sempre insatisfeitos com os seus haveres e sempre aplicados a aumentá-los para
além do suficiente a uma vida modesta e virtuosa.
Poderia argumentar-se com uma
evidência universal: os mais hábeis, enérgicos e inteligentes levaram a melhor
sobre os menos espertos, capazes e industriosos. Mas o problema subsiste:
porque haveria aquela superioridade inata, que não pode ser imputada a mérito
pessoal, de conduzir à opressão dos segundos pelos primeiros ? Porque
resultaria ela em cobiça e ambição, em lugar de ser fraterna e generosamente
colocada ao serviço de uma comunidade bondosa, humilde e inocente ? Ignoro como
os defensores do dogma de que tudo não passa de uma “construção social”, nada
existindo de congenitamente humano, explicam como agregados sociais
radicalmente fraternos, formados por indivíduos socializados no inteiro
desconhecimento do que sejam o egoísmo e a ambição, acabem a gerar criaturas
rendidas à sedução da acumulação individual de riqueza. Pessoalmente, creio
humildemente que estamos aqui perante interrogações que remetem para as
insondáveis “profundezas antropológicas” (E. Morin) do ser humano.
Não por acaso o
“conservadorismo”, sempre de pendor realista e, certamente por isso, propenso
ao cepticismo, faz da defesa da propriedade privada uma pedra angular da sua
visão política. É a sua maneira de, na análise concreta das sociedades
presentes e passadas, levar em conta o que dantes se chamava, sem complexos,
“natureza humana”. A propriedade privada já não é hoje o que era nos tempos de
Edmund Burke (1729-1797). Cada vez mais constituída por activos móveis de
variadíssimas espécies, é todavia sobre ela que o capitalismo ainda assenta e
assentará. Para os que não são ricos, reduz-se praticamente a dinheiro
proveniente do salário, de que por vezes sobra alguma poupança ciosamente
acumulada ao longo de anos de trabalho. Na era da globalização, ao dinheiro
somou-se o crédito, e aos que não têm nem uma coisa nem outra ainda chegam as
prestações dispensadas pelo Estado Social.
A massa dos que têm acesso ao
dinheiro, precisam de dinheiro e desejam cada vez mais dinheiro aumentou
extraordinariamente a partir do final da II Grande Guerra. O Estado social, que
enquanto antepassado directo do nosso foi uma criação do desafogo capitalista
subsequente à Guerra, aliviou encargos de famílias e indivíduos, e, juntamente
com os rendimentos do trabalho proporcionados por uma economia em expansão,
transformou em consumidores os que em épocas anteriores mal asseguravam a
“reprodução biológica da força de trabalho” (Marx). Nasceu a sociedade de
consumo, o consumo de massas, viabilizado pela possibilidade de gastos
supérfluos, é certo, mas a que deu vida o fascínio dos homens pela posse de
coisas. O consumo é a nova forma democratizada da propriedade. As sociedades consomem
impelidas por um ímpeto ou desejo semelhante ao que nas idealizadas comunidades
primitivas teria destruído o comunitarismo e individualizado a propriedade.
A Democracia moderna,
amadurecida na sequência das inovações ideológicas e filosóficas operadas pela
Revolução Francesa, e indesligável da transformação económica e social induzida
pela Revolução Industrial, foi pensada, ao longo da sua gestação na Europa do
século XIX, como uma forma de auto-governo ou governo consentido pelos cidadãos
através do voto. Instituía assim um poder político contratualizado em que estes
participavam indirectamente através dos seus deputados eleitos e introduzia o
princípio básico da representatividade. Assegurava as liberdades, direitos e
garantias individuais, alargados gradualmente a direitos sociais como, por
exemplo, o sindicalismo, a licença remunerada de maternidade ou a gratuitidade
da educação.
Com o Estado Social,
entretanto consagrado constitucionalmente, introduziram-se novos direitos
sociais que, juntamente com a criação do euro, a reunificação alemã e o apogeu
do optimismo histórico europeu, se julgaram garantidos para todo o sempre.
Paralelamente, o capitalismo global multiplicava as invenções que consumíamos
avidamente. Tão distraídos andávamos a consumir que mal demos pelas migrações
que iam miscigenando as nossas sociedades e viriam a produzir os fenómenos de
xenofobia agressiva que hoje alimentam os vários populismos que atentam contra
a natureza inclusiva da Democracia, fundada no princípio básico da igual
dignidade humana de todas as pessoas.
Até que a globalização
acelerada, deslocalizando milhares e milhares de empresas para as regiões
“emergentes” à custa de salários miseráveis, destruiu empregos em massa no
Velho Continente e obrigou à transformação drástica das empresas que apostaram
na sobrevivência. Tecnologias, horários, turnos, rotinas, direitos adquiridos,
domingos e feriados, tudo tem vindo a ser posto em causa a fim de enfrentar uma
competição global como o mundo nunca vira. O Velho Mundo – a velha Europa –
despertou violentamente da sonolência a que se acomodara à sombra protectora
das suas leis. A crise financeira de 2007, soprada lá da América, obrigou
vários Estados, sobretudo do Sul da Europa, a uma frugalidade que chocou o
orgulho progressista de um continente que em tempos correra à frente do seu
tempo.
Em Portugal – mas não só –
multidões de indignados descobriram que uma Democracia que não dá dinheiro
afinal não presta; pouco ou nada importa a Liberdade. E descobriram, do mesmo
passo, a deprimente passividade da nossa sociedade civil, cujos protestos se
esgotaram em menos de meia dúzia de manifestações tão aparatosas quanto
estéreis, de que não resultou nenhum movimento articulado, coerente e
constante. Umas quantas luminárias, cada uma delas ciosa da sua capelinha,
viram a sua “janela de oportunidade” naqueles surtos desgarrados de contestação
contra o governo e o “establishment” partidário. Várias cabeças se ofereceram
para dar voz ao descontentamento público e acolitar com a sua refrescante
imaginação política um próximo governo de Esquerda que opere o milagre de
voltar a encher os bolsos dos portugueses sem com isso espatifarem as Finanças
Públicas e ressuscitarem o espectro de uma nova bancarrota – e uma nova Troika.
E ainda, graças a uma poção mágica de que ignoramos o segredo, com a suprema
vantagem de nos ser poupado o desagradável incómodo de mudar de vida.
Não me refiro aos pobres, aos
que passam fome e frio, reformados ou não. Refiro-me a umas nebulosas “classes
médias” que começam no BMW de gama baixa e terminam numa fronteira indefinida,
algures no computador emperrado do filho e no velho Renault Clio do pai. Uma
massa de descontentes com a Democracia que, deixando de derramar conforto, de
aumentar ordenados, distribuir subsídios e “complementos”, transformou a visita
dominical aos centros comerciais numa expedição frustrante. Uma Democracia que
falha a sua suposta obrigação de proporcionar uma vida desafogada não cumpre o
que acabou por se tornar no primeiro dos imperativos democráticos. Os cidadãos
deixaram assim de se reconhecer nos poderes que elegem, proclamando um “déficit
de representatividade” que, apesar de tão velho quanto a própria Democracia, só
recentemente se converteu em motivo de sobressalto dos partidos instalados e de
ruidosa revolta colectiva contra um regime que defrauda as mais justas e
naturais aspirações do povo. As liberdades, direitos e garantias individuais
sempre permaneceram e permanecem intocadas, mas isso deixou de ter especial
valor para um povo que, tendo no seu geral passado rapidamente sobre os
festejos exuberantes da queda da Ditadura, logo dirigiu o seu olhar para a rica
Europa, cujo estilo de vida de imediato adoptou como seu modelo, sem por um
momento pensar que talvez existisse alguma relação entre aquele paraíso
transpirenaico, o desenvolvimento económico e a produtividade do trabalho. O 25
de Abril foi um maná trazido pela Democracia !
O que esta constitui
propriamente como regime político deixou de interessar. Na cabeça de demasiada
gente, deveria ser antes de mais uma engenharia destinada a engendrar afluência
e bem estar. Em vez disso, passou a ser uma frustração. O consumo tornou-se a
maior paixão contemporânea, e a verdade é que a Liberdade interessa a poucos:
não faz falta nenhuma para ver novelas, jogar no computador, passear de carro e
ir ao futebol.
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