Há 10 anos seria difícil prever o tipo de políticas que hoje estão a ser postas em cima da mesa. Talvez Medina Carreira já tivesse consciência da situação, mas as restantes 10 milhões de almas passeavam-se pelo país sempre à espera de melhores dias.
E em certa medida, a tradição histórica recente apontava mais ou menos nesse sentido. Era preciso estudar, fazer o curso, e a partir daí entrava-se no El Dorado chamado mercado de trabalho português, com pouco desemprego, salários crescentes para profissões técnicas, aquisição de casa com empréstimos baisinhos e ainda um carro lá pelo meio.
O que nós não sabíamos era que bem no centro das decisões nacionais, e que mexem com o dinheiro de todos nós, as coisas já começavam a dar sinais de algum desgaste.
O sistema social montado baseava-se na obtenção de fundos do setor privado, via impostos e quotizações de toda a espécie, para depois distribuir: parte para aqueles que já tinham contribuído, parte para outros que nunca contribuíram.
Os que nunca contribuíram receberam apoios, sobretudo ao nível das reformas, mas sempre em menor valor.
Os que contribuíram recebiam subsídio de desemprego, baixa médica e reforma, consoante a sua condição profissional. Os valores a receber aproximavam-se do seu ordenado base.
A coisa parecia fazer sentido, na aparência. O que já não fazia sentido e que se omitia era o tipo de cálculo subjacente a todas estas contas sociais. Para comprar votos, as fórmulas continuavam a ser muito generosas para os beneficiários e não exigiam na mesma proporção aos que contribuíam.
Ora, se a soma dava inferior a zero, só havia uma maneira de compensar o exercício negativo:
Ou roubar ao tesouro, se é que ainda havia algo, ou começar a pedir emprestado ao futuro para pagar no presente.
Para pagar o défice da Segurança Social alguém se lembrou de ir buscar dinheiro aos impostos, que como sabemos, variam em função dos ciclos económicos. Nos últimos anos a SS pede aos impostos à volta de 7 mil milhões de euros, tanto como os juros ou a Saúde. Esses 7 ou 8 compensam a diferença entre as receitas (22 mil milhões) e as despesas (29 mil milhões) da própria SS.
Na altura, fazer esta mistura talvez fosse uma medida temporária, só para ajudar neste ou naquele ano, mas a porta tinha ficado aberta e já ninguém a iria fechar. Impostos e quotizações passavam a fazer parte do mesmo bolo, e como o resultado final das contas públicas dava sempre negativo, a dívida gerada anualmente misturava-se também, tal como um vírus que se espalha pelo sistema.
Misturar impostos com as contas da SS, pedir dinheiro emprestado para financiar indiscriminadamente e não resolver os buracos, eis a fórmula mágica que gerou enormes expectativas aos portugueses quando estes já não geravam riqueza suficiente para tanto apoio social.
Mas tínhamos entrado no €, aluno bem comportado, e com a quebra vertiginosa das taxas de juros (que na década de 90 andavam pelos 8 a 10%) para 5, 4, 3%, outro mundo se abriu aos olhos da classe política:
A dívida como motor de crescimento e de manutenção do status quo das políticas sociais. Era tão fácil.
Perante tanta facilidade, para quê pensar no pior? Para quê repor o equilíbrio orçamental? A dívida atirava os problemas para o futuro, sempre na esperança que o futuro os resolvesse.
O futuro é hoje, e se desde 2011 andamos a ir buscar dinheiro às reformas e aos salários mais elevados (esqueçam os impostos sobre os ricos, taxas de energia e mais não sei o quê, porque tudo isso nunca passará de umas centenas de milhões de euros) para tentar baixar o défice, o que a classe política já percebeu é que não há alternativa em ir também às pensões de... sobrevivência.
Ainda não descemos ao fundo, porque falta mexer nas reformas de 400 euros e no RSI de 200 ou 300 euros, mas havemos de lá chegar. A aritmética é implacável nestas ocasiões, e julgo saber do que estou a falar.
Mas mesmo que não cheguemos lá por motivos que agora me escapam à compreensão, como um perdão espetacular da dívida e dos juros ou coisa que o valha, a compreensão da realidade fez-me ter consciência de que o desequilíbrio financeiro gerado pelos políticos nas contas do Estado iria também afetar os valores mais baixinhos que estes prometeram oferecer às populações, quer tivessem contribuído ou não. É a quebra de confiança no último bastião que ainda justificava o regime atual: a ajuda aos pobres.
É para lá que nos encaminhamos, e com todas estas quebras de confiança fico a pensar no Contrato Social do Rousseau, que sendo um documento inspirador de tanta revolução, era apenas mais um documento que queria rasgar com o poder do regime monárquico absolutista sem perceber as consequências do que propunha.
E o que propunha era um apelo à realização de valores numa sociedade que ninguém pode prometer, como a igualdade, a fraternidade e por aí fora. Por incrível que pareça, o romantismo de Rousseau foi um dos maiores apelos a não pensar com a razão. Foi sentimento e emoção, sem querer olhar para as questões de forma racional. As intenções eram ótimas, mas a realidade é que manda.
O contrato social que Rousseau pediu à sociedade foi-lhe concedido no século 19, sendo a República e mais tarde a democracia as formas de regime e sub-regime que perpetuaram a essência da sua visão. No início do século 20 já estava tudo farto e surgiram as ditaduras, que também se podem suportar na visão romântica do Rousseau!
Entretanto também nos fartámos delas e voltámos às democracias novamente.
Mas o desgaste volta a surgir novamente.
Tiago Mestre
Sem comentários:
Enviar um comentário