«A luz que intensamente se
projecta na vida material, no desenvolvimento económico, nos aumentos
indefinidos dos níveis de vida vai deixar na obscuridade toda a parte
espiritual do homem, do que me parece dever esperar-se o tempo materialista
por excelência, a época dos povos ricos sem alma.»
ERROS E FRACASSOS DA ERA POLÍTICA
Meus
Senhores:
Tomou
posse nova Comissão Executiva da União Nacional1 e eu dispenso‑me de louvar os
que saem e de apresentar os que entram. Embora coisa devida e justa sabe-se
que é sempre assim, o que tira às palavras parte do seu valor. Peço‑lhes por
isso desculpa que me será concedida, havendo coisas de alguma importância a
dizer.
I
A
reorganização faz-se num ano crucial da vida política, não porque terminem as
guerras do Ultramar, pois que os inimigos que as fazem e os que as sustentam,
declaram, quererem continuar a perturbar a vida e o trabalho alheios2; não porque tenha de haver eleições
de deputados3; ainda que relevantes como são
sempre; mas especialmente porque novo corpo eleitoral tem de reunir-se para
escolha do chefe do Estado4 e de toda a Nação portuguesa.
Seja qual for a evolução dos acontecimentos, não pode haver dúvida de que é
nos sete anos a seguir que por imperativos naturais ou políticos se não pode
fugir a opções delicadas, e, embora não forçosamente a revisões, à reflexão
ponderada do regime em vigor. E é nas mãos do chefe do Estado que virão a
pesar as maiores dificuldades e da sua consciência que dependerão as mais
graves decisões.
O que é
um regime político? Um regime político é a definição dos órgãos da soberania,
do modo como se constituem, participam do poder e colaboram para o bem comum
da sociedade civil. É também a enumeração daqueles direitos que as leis
hão-de respeitar no homem e, no nosso caso, ainda a enunciação de princípios
morais, sociais e económicos que se julgam úteis para dar estabilidade à vida
do conjunto humano e imprimir à vida nacional uma finalidade. O que quer
dizer que um regime pode ser também uma política e não apenas uma
constituição. O nosso é uma coisa e outra.
Ora nós
quisemos dar ao país, assolado pelas devastações da sua anarquia, um regime
novo; mas muitos dos nossos homens públicos, educados na filosofia política
do século XIX, têm-nos considerado sempre um governo à espera de eleições
«livres» para uma «assembleia constituinte» que vote «nova Constituição» e
com ela garanta ao povo «todas as felicidades». De modo que se verifica o
seguinte: abolidas neste País as instituições tradicionais, não se encontra
de 1820 a 1926, através das Constituições, Carta Constitucional e Actos
Adicionais à Carta, entre revoluções, golpes de Estado, ditaduras ou vida
constitucional, não se encontra regime, dizia, de que possa afirmar-se ter
vivido ao menos os quarenta anos que para o ano perfaremos. Ao mesmo tempo,
nenhum foi tão estável, tão pacífico e eficiente como o actual. E daí provir
o absurdo de o provisório ser mais duradouro que o definitivo e o temporário
mais estável que o consagrado para a eternidade.
A mim o
que mais me admira é não se haver estudado a razão desta sorte de
contra-senso. A vida das sociedades humanas está sujeita a evolução, embora
mais lenta do que geralmente se cuida, quando atentamos nas suas estruturas
fundamentais. Acontece, sim, que à superfície de vez em quando se levantam
ondas que mais chamaríamos modas ou efervescências de opinião, destinadas a
cair e a acalmar-se, se não se lhes dá a razão de ser da própria vida
política, como tem sido muitas vezes o caso. De modo que o essencial é
descobrir as linhas mestras da vida nacional que possam adaptar-se, sem se
quebrarem, às contingências dos tempos, e definir a orientação que se lhes
há-de imprimir, e muitas vezes não é mais que a linha de continuidade de um
sentimento colectivo. Assim os regimes se firmam e perduram na medida em que
reflectem os homens e as Nações - tão diversas umas das outras! - perfilham
as aspirações comuns e suprem mesmo deficiências da colectividade.
Se a
experiência vale alguma coisa, devíamos tirar daqui uma ilação. A força pode
fazer revoluções mas não pode só por si mantê-las sem o apoio da consciência
nacional. A ideia de que a Nação está hoje cloroformizada pelo medo ou por
uma espécie de avitaminose política é incompatível com o entusiasmo e a
confiança com que se bate em três territórios ultramarinos. Mais correcto é
pensar que, independentemente dos governantes, sujeitos a deslizes e
deficiências na orientação dos negócios públicos, se encontrou uma fórmula
conforme ao modo de ser da colectividade e que a todos permite viver em paz e
progredir. É de aconselhar que não se substitua enquanto se revelar eficaz e
esteja confiada a quem na mais alta magistratura a possa defender e fazer
cumprir.
Estas
considerações deviam bastar para serenar os ânimos inquietos, exageradamente
preocupados com as eleições de deputados que este ano se hão de também
realizar.
A União
Nacional apresentará, como de costume, as suas listas e é de crer que
elementos políticos de oposição ao regime, depois de alguns terem aproveitado
o período eleitoral na criação de um clima subversivo, também apelem para o
sufrágio popular. Mas terão aqui dificuldades, porque representam o passado,
e este, se infeliz, não dá garantias suficientes de aliciar o crédito
público. Alguns poderão apresentar-se conto a radiosa esperança do futuro,
mas também estes têm «passado», ainda que fora de Portugal, e o comunismo é
neste País tão antinacional e anticristão que uma Nação que se bate a defender
a sua integridade territorial e moral não o apoia, não o suporta, não pode
reconhecê-lo dos seus.
Não há
mesmo possibilidade de as oposições gizarem programas para o futuro imediato,
salvo o que nós próprios temos definido já. Há poucos dias tive a oportunidade
de ler o documento em que numerosos democratas solicitavam autorização para a
celebração, de prever ruidosa, - do 31 de Janeiro na cidade do Porto. Na
exposição faz-se acerada crítica da Administração e do Governo, apontando os
vários problemas em que a actuação ou se verificava errada, ou claramente
deficiente. E os autores não tiveram trabalho a documentar os seus assertos,
pois se limitaram, para cada assunto, a citar as passagens correspondentes de
discursos proferidos na Assembleia Nacional. Nós conhecemos os riscos das
transcrições fora do contexto, mas posso glosar o facto em meu proveito. Há
anos já o Doutor Marcelo Caetano, então ministro da Presidência, fazia notar
encontrarem-se mais diferenças ideológicas entre os membros do Governo do que
algumas vezes entre representantes de partidos diferentes. Foi exacta a
observação e o facto apontado que a confirma quer dizer duas coisas: a
primeira é que, salvaguardada a unidade no essencial, não nos afrontam as
correntes de pensamento que se manifestem acerca dos problemas nacionais e
das suas possíveis soluções; a segunda é que entre nós o deputado é livre a
discutir e a votar, o que não acontece nos regimes partidários, em que a
disciplina não pode deixar de ser considerada factor essencial à coesão das
forças políticas. Por isso, do outro lado do regime, os que pretendem
combater-nos não dispõem de grandes possibilidades.
II
Apesar
de confiante na experiência e conhecimentos das pessoas mais directamente
encarregadas da acção política, não quero deixar de referir-me à atmosfera
mundial e doméstica em que a mesma se desenvolverá.
Vivemos
uma época que, apesar de uma verdadeira explosão científica e correspondente
progresso em numerosos sectores da vida, se apresenta excessivamente
perturbada na consciência dos homens e dos povos. Esta perturbação resulta de
se terem rompido, com a Segunda Grande Guerra, numerosos equilíbrios sobre
que assentavam a vida social e as relações dos Estados, e também das ideias
admitidas para a criação da sociedade futura. O mal vem portanto dos factos e
das situações criadas e também dos erros de julgamento e de pensar que nos
invadiram e constituem veneno corrosivo da acção.
Hitler
prometia com a sua vitória a paz para mil anos5; perdida a guerra, veio prometê-la
a ONU, tanto no seu ideário como no jogo das suas engrenagens, para prazo
indefinido. Pois está sendo difícil encontrar lugar na terra onde não
alastrem guerras e conflitos de toda a ordem. Ou não soubemos estabelecer e
garantir a paz ou estamos equivocados quando a pensamos para sempre possível
entre os homens e as Nações.
Aumentam
extraordinariamente no mundo, com o trabalho e os recursos da técnica, os
produtos para as necessidades do homem; talvez pudéssemos dizer que para
todos bastariam, em nível modesto de vida. Pois a pobreza parece apertar cada
vez mais aflitivamente os homens e há miséria por toda a parte, mesmo no seio
dos países mais desenvolvidos e ricos. E assim parece que ou nos extraviamos
no supérfluo em detrimento do necessário ou o nosso coração se perde nos seus
anseios de generosidade e não descobre a fórmula de distribuição de bens que
acabe coara os pobres na terra - se é possível acabarem na terra os pobres.
Nos
povos estabilizados de velha civilização, nos povos que diríamos a caminho de
um equilíbrio sadio ou nos que iniciam a vida como Estados independentes,
repetem-se sem descanso as invocações democráticas, os apelos à liberdade e à
igualdade dos homens, à soberania do povo, à omnipotência justiceira e
criadora do voto, à outorga deste até ao limite extremo de «um a cada
cabeça». Pois no funcionamento das instituições políticas, assistimos ao
mesmo tempo ao envelhecimento dos princípios que foram dogmas para nossos
avós, e depois de século e meio de domínio nos legam uma sociedade moral e
politicamente degradada. Ao aconselhar, quase diríamos, ao impor a todos os
povos essas instituições e princípios, ou nos enganamos sobre o absoluto do seu
valor ou nos iludimos sobre a precariedade das soluções que se encontraram
para os realizar. Isto é, depois de milénios o homem conclui não saber
governar-se nem poder governar-se sem respeitar o primado da autoridade e da
justiça. Ora estas limitam, só porque existem, a liberdade e a igualdade; e
da trilogia revolucionária de 89 a única invocação que parecia realizável na
sua plenitude - a fraternidade será sacrificada ao egoísmo dos homens e ao
materialismo da vida.
Todos
terão notado entrar-se numa época em, que a política está a ser dirigida pela
economia. E, ainda que estejamos no começo da sua influência, já deslizes se
notam de profunda repercussão na vida das Nações. Está generalizada a ideia,
que supomos errada, de que todas as sociedades humanas podem, começar o seu
desenvolvimento económico pela industrialização e que o grau de
industrialização atingível é igual em todos os povos. Errou-se na avaliação
dos capitais disponíveis para o desenvolvimento do mundo e nalgumas partes se
houve de voltar atrás em programas ambiciosos de créditos e subsídios, para
não se alterar a estabilidade económica e financeira dos países doadores.
Errou-se ao considerar que a economia se pode basear não no trabalho próprio,
não na técnica própria ou importada, mas na generosidade alheia e em outros
valores morais para que incessantemente se apela. A luz que intensamente se
projecta na vida material, no desenvolvimento económico, nos aumentos
indefinidos dos níveis de vida vai deixar na obscuridade toda a parte espiritual
do homem, do que me parece dever esperar-se o tempo materialista por
excelência, a época dos povos ricos sem alma.
Disse
que a economia tende a dirigir a política; mas a técnica, essa, quer
substituí-la. Ora, sendo a política indispensável ao governo dos povos, o
facto só pode verificar-se se a técnica for em si mesma uma política.
Pergunto se é. O avanço das ciências aplicadas aos processos de trabalho
abriu à produção e ao funcionamento dos serviços larguíssimas perspectivas.
Isso é bem, pelas facilidades que cria e a maior produtividade que dá ao
trabalho, e representa um benefício inestimável, dados os aumentos da
população e a crescente complexidade da vida. É duvidoso que possa ir além
disto; é sobretudo pernicioso que se tenda a converter o homem em engrenagem
da própria técnica, que é para onde se caminha. Até aqui a política definia o
que devia fazer-se; a técnica ensinava como se devia fazer. Mas se à técnica,
conduzida pela ambição do desenvolvimento económico, mediante o aumento da
produção, cabe pronunciar-se sobre a ordem das realizações e sobre a
orientação da vida social, é ela também competente para traçar uma política,
e nós sabemos bem que ideologia em tais termos a inspira. Tem de salvar-se o
homem, da tentação do abismo. Ele continuará a apresentar-se-nos como ser
moral por excelência, embora com necessidades materiais, o que significa
haver outro mundo, dever haver outro mundo para além daquele que a técnica e
a economia podem criar.
Um dos
fenómenos mais embaraçantes do mundo de hoje é a crise do direito
internacional que uns observam como herança da sua civilização e outros
desprezam para se instalarem, a seu gosto na terra. O alargamento da
comunidade internacional não devia ter-se processado à margem da preparação
dos Estados para aceitarem e cumprirem as normas que regulam por consenso
geral ou por convenção expressa a vida de relação entre as nações; mas
seguiu-se orientação oposta com o princípio da universalidade de todas as
organizações internacionais, como se o registo de admissão equivalesse à
garantia de observância das normas que as regulam, o que está demonstrado não
ser exacto. A Organização das Nações Unidas tem feito - pecaminosamente - o
máximo por condescender com práticas aberrantes e até com a defesa de
supostos interesses de muitos países irrequietos e ambiciosos contra os
legítimos direitos de outros. Apesar disso, o desequilíbrio das situações
apontadas é de tal ordem que nós o podemos ver na base dos numerosos
conflitos que se espraiam pelo mundo. O princípio de que nas épocas de crise
a lei internacional é para cada Estado a que serve o seu interesse, sem
respeito pelo direito alheio, lançou-nos no caminho das grandes confusões e
dos máximos perigos.
Nesta
ligeira referência a factos e erros da nossa era que a tornam desassossegada
e infeliz, não podemos esquecer o maior de todos - a África em fogo.
O nosso
ministro dos Negócios Estrangeiros6 tem feito numerosas exposições
sobre a política externa nas quais os problemas de África e do Ultramar
português têm tido o merecido relevo. Eu próprio me recordo de haver exposto
com alguma largueza o enquadramento da nossa política ultramarina tanto na evolução
contemporânea de África como no nosso direito constitucional e na política
interna. Não me repetirei; actualizarei apenas as situações, referindo-me aos
factos mais recentes.
Mau
grado os esforços da Organização da Unidade Africana, são cada vez mais
vincadas as divisões e incompatibilidades que uns aos outros opõem os países
daquele Continente. Vários ao sul do Equador dão mostras de não confiar no
desinteresse dos árabes que se propõem conduzi-los. Por outro lado, estes e
alguns outros pretendem chefiar a revolução africana, não já e apenas no
sentido da independência dos territórios coloniais mas no da adopção de uma
política, ideológica e economicamente sustentada pelo bloco comunista. A
revolução de Zanzibar e a formação da União com o Tanganica7 cavaram urna brecha difícil de
colmatar. Particularmente por ali, mas também pela costa ocidental, entram as
ideias, os homens, as armas que se propõem atingir o coração de África, para
o domínio comunista desta.
Como
nenhum país africano tem ao presente desenvolvimento económico e social que
permita a realização do comunismo, o apoio do referido bloco representará
sobretudo a substituição das posições ocidentais, no que respeita à Europa, e
um perigo para a independência da África no que respeita àquele Continente. O
chamado socialismo africano não pode ser mais no nosso tempo que a
expropriação e em muitos casos a espoliação dos bens, meios de trabalho e
empreendimentos que os europeus ali fizeram surgir. O racismo negro, no que
tem de irredutível cora a presença do branco, pode ser visto como a explosão
duma incompatibilidade étnica, um desagravo ou um desforço, mas, aos olhos de
muitos agitadores, é também uma operação económica, aliás fracamente
reprodutiva pela dificuldade de organizar o trabalho e manter o nível da
produção com, elementos locais.
Assim
as nações europeias que cederam as posições políticas mas entendiam que,
apesar de tudo, lhes seria possível continuar a guiar os povos africanos
independentes, pela superioridade da técnica, pela força do capital
emprestado ou gratuitamente cedido, pelo brilho da cultura, têm de haver-se
agora com concorrentes difíceis e estranhos ao Continente africano que, além
de implicações económicas e políticas, comprometem a obra ali empreendida.
Há
semanas a esta parte elementos subversivos vindos do Tanganica, directamente
ou através do Malawi, romperam em Moçambique com as acções anunciadas de
sabotagens e morticínios dos portugueses negros. Tentam que os casos da Guiné
e de Angola se repitam ali com o auxílio e colaboração do Tanganica, embora
até ao presente sem intensidade comparável aos primeiros, porque nos
encontraram preparados e atentos. Constituindo aquele território um Estado
membro da Comunidade britânica, somos levados a crer que a Inglaterra, sem
falar em obrigações de alianças, entende não estar em condições de dizer uma
palavra de moderação a um membro da Comunidade que se comporta tão ao arrepio
da correcção jurídica e política devida a Estados vizinhos. Em compensação a
defesa contra ataques, protegidos nos países de onde partem, começa a ser
aceite pelas potências, como comportamento normal e inteiramente justificado.
Este o
teor em que vai o mundo e é dentro deste quadro que havemos de defender os
territórios nacionais. É uma pena que os três milhões e meio de contos gastos
anualmente nesta defesa, além dos muitos centos de milhares que as grandes
Províncias despendem com o mesmo fim, não possam ser aplicados aqui e lá em
estradas, portos, escolas, hospitais, aproveitamento de terras, instalação de
indústrias ou exploração de minas. Com tais somas se podia fazer a relativa
felicidade de muita gente em vez de lhe perturbar e sacrificar a vida, alimentando
a - vaidade de ideólogos ou de aventureiros que um dia sonharam com impérios
afinal inacessíveis às suas ambições.
Estas
importâncias assim gastas nas províncias ultramarinas não serão mal
empregadas? O problema não pode pôr-se-nos assim, mas só em face da
imperiosidade do dever político e das possibilidades nacionais. O cumprimento
do dever não tem de ser contabilizado; as possibilidades são as do nosso
trabalho que, se tiver de ser mais penoso e longo, o será sem hesitações.
Sei que
em espíritos fracos o inimigo instila um veneno subtil com afirmar que estes
problemas não têm solução militar e só política e que todo o prolongamento da
luta é ruinoso para a Fazenda e inútil para a Nação. Eu responderei que o
terrorismo que somos obrigados a combater não é a explosão do sentimento de
povos que, não, fazendo parte de uma nação, conscientemente aspirem à
independência, mas tão-só de elementos subversivos, estranhos na sua
generalidade aos territórios, pagos por potências estrangeiras, para fins da
sua própria política. Como elementos alheios à colectividade nacional
estiolar-se-ão no momento de lhes ser recusado o território em que se
organizam, e treinam, o apoio político recebido e os subsídios cru armas e
dinheiro. De modo que a tal solução política, se não prevê a desintegração
nacional (que todos fingem repelir), não se encontra em nós próprios mas nos
países vizinhos, aos quais, pelos meios ao nosso alcance, possamos ir fazendo
compreender melhor os seus deveres de Estados responsáveis para connosco e
para com uma pobre gente que estupidamente se faz sacrificar a interesses
alheios. Mas neste entendimento a defesa militar é o único meio de chegar à
solução política que no fundo é a ordem nos territórios e o progresso
pacífico das populações, como o vínhamos prosseguindo.
Vamos
em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o
sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que
sim. No plano internacional, começou por condenar-se sem remissão a posição portuguesa;
passou depois a duvidar-se da validade das teses que se lhe opunham e
acabaram muitos dos homens mais responsáveis por vir a reconhecer que
Portugal se bate afinal não só para firmar um direito seu mas para defender
princípios e interesses comuns a todo o Ocidente. No plano africano, quatro
anos de sacrifícios deram, tempo a que se esclarecesse melhor o problema das
províncias ultramarinas portuguesas, a diversidade das instituições criadas
em séculos naquele Continente e os ganhos ou perdas, em todo o caso as
dificuldades que a independência, tão ambicionada por poucos, trouxe a todos
os mais e os dirigentes não sabem ainda como resolver. Assim, bastantes povos
africanos nos parecem mais compreensivos das realidades e mais moderados de
atitudes. Eis o ganho positivo desta batalha em que - os portugueses europeus
e africanos combatemos sem, espectáculo e sem alianças, orgulhosamente sós.
III
Agora
umas palavras sobre o ambiente político interno que adivinho denso e
carregado de dúvidas e preocupações. Eu compreendo isso e, ao aflorar certas
causas da perturbação mundial, de algum modo e em parte o explico também.
Devido a jogo inextricável de interdependências, uma parte da vida da Nação
sofre as pressões externas - doutrinárias, económicas ou políticas - a que
não tens possibilidade de esquivar-se. E assim, correndo mal os tempos no
mundo, difícil seria que pudessem correr aqui inteiramente bem. Mas, além
disso, temos causas privativas de mal-estar.
Enfrentamos
guerras no Ultramar que não se sustentam nem hão-de vencer sem sacrifícios de
sangue e de dinheiro. Por isso os impostos tiveram de ser agravados e é ainda
possível que, nas vastas reformas publicadas, algumas incidências não
realizem a justiça e por isso mesmo não correspondam à vontade do legislador.
Uma
série de maus anos agrícolas havia de saldar-se por perdas vultosas tanto
para o proprietário da terra como para o agricultor. Atravessamos um ano
excepcionalmente seco que prenuncia, a continuar assim, urra estio sem águas
de rega e graves dificuldades no abastecimento para o próprio consumo
corrente. A indústria, que trabalha ao abrigo das irregularidades
climatéricas, tem-se multiplicado e progredido satisfatoriamente, mas, devido
ao excesso de população que trabalha nos campos, o progresso daquela não
beneficia proporcionalmente os homens da terra que se refugiara na emigração,
aliás em desordem muitas vezes e em excesso injustificado, originando crises
de mão-de-obra em vastos sectores rurais. O abastecimento público tem podido
manter-se em termos quase normais mas muitos preços têm subido, com os
correspondentes gravames para as economias mais débeis.
Quando
estes fenómenos se verificam e nestas proporções, a população tem a tendência
para intensificar e acelerar pressões no sentido de ver aumentadas as
remunerações do trabalho, pensando esquivar-se às dificuldades comuns. A
experiência largamente vivida pelos povos é a da inutilidade ou nocividade
desses remédios, porque as altas salariais se reflectem nos preços e estes no
valor da moeda, tudo voltando ao começo. A obra de maior vulto realizada
pelos Ministros das Finanças dos últimos quarenta anos foi exactamente
conseguir manter o equilíbrio financeiro e a estabilidade monetária, que
estão na base do nosso progresso e é necessário conservar para podermos
subsistir; e por esse motivo, salvo nos casos de ajustamentos impostos por
imperiosa justiça, não devemos aceder à onda de aparentes facilidades que
aliviam o dia de hoje, comprometendo o futuro. A mim se me afigura
especialmente absurdo que, tendo como Nação, de fazer face a maiores
despesas, queiramos sempre, na imitação desequilibrada de modas alheias,
ganhar mais e desejemos ao mesmo tempo trabalhar menos.
Durante
a última grande guerra me aconteceu algumas vezes receber altas
personalidades britânicas para negócios graves, e notar-lhes o fato velho,
coçado, fimbriado nas mangas. Chegava a comover-me observar esses sinais de
pobreza que não havia pejo em mostrar, porque representavam afinal o
sacrifício conscientemente feito ao fim supremo da luta em que a sua nação se
empenhara. Sei que não estamos em termos comparáveis e talvez por essa razão
não vemos isso aqui, antes em certos casos o espectáculo da riqueza que se
alardeia e quase afronta pelo exagero com que se manifesta. Por mim desejaria
que fôssemos mais modestos e, sobretudo nestes momentos de crise, mais
discretos também.
O facto
de ter-se anunciado e começado a executar um plano que se chamou de
reconversão agrária, alertou a muitos, porque não foram inteiramente
compreendidos os fins, os métodos, as cautelas a ter na longa transição:
nada, a não ser a incompreensão, devia causar receios ao nosso meio agrícola.
Eu sou um rural e, embora em situação diferente, vivi duas guerras, uma em
que interviemos activamente nos quadros de uma aliança, outra em que não
batalhámos mas houvemos que organizar a defesa nos quatro cantos do mundo.
Daí vem compreender o campo e conhecer as necessidades vitais que o campo tem
de satisfazer. Independentemente do que se possa chamar a poesia campestre,
que atrai os sorrisos um tanto desdenhosos da economia industrial, por mim, e
se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à
indústria; mas se quereis ser ricos não chegareis lá pela agricultura, ainda
que progressiva, e industrializada, neste País de solos pobres e climas
vários. A terra é humilde, tanto que se deixa a cada momento pisar; o trabalho
da terra é humilde, porque o homem a cultiva, humildemente debruçado sobre as
leivas; o fruto do trabalho ria terra é pobre porque está rio início de um
ciclo de operações comerciais ou industriais destinadas a valorizá-lo ou a
enriquecê-lo. Assim a faina agrícola, sujeita à torreira do sol ou à
impertinência das chuvas, é acima de tudo uma vocação de pobreza; mas o seu
orgulho vem de que só ela alimenta o homem e lhe permite viver. Quando se
governa um país, e se nos deparam os mercados difíceis, os mares
impraticáveis, as bocas famintas sem saber de onde há-de vir um bocado de
pão, a terra pobre, a terra humilde sobe então à culminância dos heroísmos
desconhecidos e dos valores inestimáveis.
Ao
afirmar-se a necessidade de corrigir o fácies agrícola do País, alargando a
floresta às serras nuas e aos campos que cobrimos de searas pobres, não se
pensou em desertar da cerealicultura, mas na possibilidade de ter searas mais
rendosas ou culturas mais ricas noutros terrenos e deixar ao mesmo tempo que
as árvores cresçam onde o trigo não grada.
Deste
modo mais intensa florestação do País não significa a diminuição das
culturas, o êxodo dos trabalhadores, o abandono do pão que cultivamos, aliás,
sem grandes condições para isso, e teremos de pagar, mesmo se caro, como quem
paga um seguro de guerra.
Tem-se
falado muito nos defeitos da nossa estrutura agrária, que são evidentes e
mais evidentes se tornarão a todos os interessados na medida em que pudermos
corrigi-los. Mas, talvez por não termos bem definido os termos da questão
fundamental que é a relação da cultura com a propriedade, houve sobressaltos
injustificados, pois logo se enxergaram repercussões na pequena horta
familiar ou na herdade extensa de bem equilibrada cultura. Isso nasceu do
amor à terra que gira no sangue das nossas veias mas não se justificava nem
em face das intenções nem de quaisquer providências tomadas.
Grandes
e pequenas coisas se têm, acumulado a empecer-nos o caminho, umas apenas na
imaginação sobressaltada, outras nos factos reais da vida. Mas o que houver,
que rever-se há-de sê-lo, não na precipitação mas na calma do nosso melhor
entendimento.
IV
Compreende-se
bem que, neste emaranhado de problemas e de soluções possíveis, de
adversidades que nos chovem como castigo do céu e de dificuldades nascidas da
política mundial, seja fácil criar aqui dentro ambientes de dúvida e de
perturbação. Disse que uma parte da vida nacional flui das interdependências
externas; mas outra parte, a mais importante e grave, somos nós a determiná-la,
a tomar dela a responsabilidade plena. E um povo que toma, diante de, si
mesmo e à face dos imperativos da sua história, a decisão viril de resistir,
porque sabe que precisa de resistir para sobreviver, há-de tirar desta mesma
decisão as forças necessárias para enfrentar as dificuldades. Penso assim que
o Ultramar não pode ser para nós fonte de desânimos mas, ao contrário, do
mais sadio optimismo.
Além
dos portugueses de África que combatem nas fileiras ou defendem
portuguesmente naquelas terras as suas aldeias e lavras, teremos já entre nós
dezenas de milhares de homens e, não sei quando, centenas de milhares que
viveram nos matos, se arriscaram nos mares e nas selvas, jogaram a vida pela
Pátria e viram no Ultramar projectada a Nação na sua verdadeira grandeza. Que
podem significar para estes homens umas oposições que conspiram com o
comunismo em, Paris ou em Argel para lhe entregar Portugal, ou aquelas, mais
moderadas embora, que se limitam a ver se podem conquistar o poder, sabendo
todos, pela imprecisão da sua linguagem, que perder a batalha aqui ou lá é
tudo a mesma coisa? E não estaremos nós à altura dos que se batem, não só por
eles e por nós mas pela justiça que nos assiste e pelo bem dos povos a que
nos devotámos?
Quando
a União Indiana se apossou de Goa, o que internacionalmente se concluiu foi
que obteve minas ricas de ferro e manganês e ficara com um porto como não
havia outro em, todas as suas costas; e parece não ter acudido à mente de
ninguém que havia ali também, uma alma e uma cultura indo-portuguesa, amorosa
criação de quatro séculos e meio de trabalhos e sacrifícios. Pois por este
motivo já quase não trabalham as minas, nem se desenvolve o porto de
Mormugão; e a União Indiana, para aumentar de uma polegada o seu imenso
território, forjou, cravando-o no seu seio, mais um factor de divisão na
profunda divisão que a agita. Nunca houve tantos portugueses nem tão elevado
sentimento português em Goa a enfrentar autoridades tirânicas, no mesmo
território que a hipocrisia de muitos diz «libertado da opressão» portuguesa.
Esta
lição que o mundo agora colhe do nosso sofrimento, não queremos que
levianamente a tire dos outros territórios que constituem a Nação portuguesa.
Mas este não querer tem um segredo que é sabermos bem, porque nos batemos,
isto é, as razões da nossa luta nacional.
Humildemente
confesso não ter conseguido em tantos anos duas coisas que aliás se me
afiguravam essenciais: convencer os governos de que precisavam de um apoio
político para a sua acção e de que esse apoio só podia advir-lhes da União
Nacional; convencer a União Nacional de que a formação política não pode ser
abandonada a acasos de leituras ou de influências familiares mas a uma
doutrinação sistemática e persistente.
Em face
de nós só dois agrupamentos levam na devida conta a formação dos seus adeptos
- a Igreja e o comunismo. Embora, conforme a frase de Tertuliano, a alma
humana seja naturalmente cristã, desde sempre entendeu a Igreja não poder
existir sem uma doutrinação activa que ilustrasse os entendimentos no dogma,
e afeiçoasse as consciências às práticas da sua moral. Assim a Igreja pode
cristianizar a nação e pode até cristianizar o Estado; e parece-me dever
ficar por aí, pois não pode substituir este nem conduzir os negócios daquela
na ordem material ou profana. E se, esquecendo amargas experiências
históricas, se sentisse tentada a intervir na acção política, não devia
fazê-lo, porque, à medida que vemos materializar-se a vida, se torna mais e
mais absorvente a missão espiritual da Igreja.
O
comunismo que também quer ser à sua moda religião, trabalha como uma igreja,
doutrinando e formando os seus adeptos, com largueza de meios e base
científica dignos da melhor escola, mas tão eficientes que, sendo a doutrina
comunista antinatural, mesmo contra a natureza consegue fiéis que se lhe
entregam inteiramente e por ela morrem, se necessário.
Na
carência a que me referi e no que é essencial, o que nos tem valido é o fundo
ainda consistente da lusitanidade, as lições da história e o exemplo dos seus
valores, a sã tradição de nossos maiores que os acontecimentos políticos dos
últimos séculos não conseguiram obliterar. Mas para conquistar uma adesão
firme, formar um soldado de uma causa desinteressada, granjear-lhe a
dedicação incondicional, é precisa a acção constante de uma doutrinação
esclarecida. Quando o inimigo sentiu que organizações nossas podiam ser o
fermento duma nova sociedade ou forças de estabilização necessária na época
agitada em que se tem vívido, logo iniciou a campanha necessária ao seu
descrédito. E muito bem, diante da nossa indecisão, porque ele sabia o que
lhe convinha e nós dávamos provas de ignorar o de que tínhamos necessidade.
Pois
bem, se o Centro de Estudos Políticos que existe aqui fizer irradiar de si a
luz que ilumine, o calor que aqueça sobretudo as almas jovens, naturalmente
generosas e sedentas, nós podemos estar certos de que não serão abalados os
alicerces nem com eles o futuro desta Nação.
1. Formado por António Júlio Castro Fernandes
(presidente), Armando Cândido de Medeiros, Arnaldo Pinheiro Torres, Francisco
Casal Ribeiro e Francisco Soares da Cunha.
2. A guerra em Angola tinha começado em 1961,
na Guiné em 1963 e em Moçambique em 1964. Entretanto tinha sido perdido Goa,
invadida e ocupada em Dezembro de 1961 pela União Indiana.
3. As eleições para os 120 deputados à
Assembleia Nacional realizaram-se em 7 de Novembro de 1965.
4. A eleição realizou-se em 25 de Julho de
1965, tendo sido reeleito o almirante Américo Tomás.
5. De facto, Hitler prometeu um novo Reich alemão
(o 3.º) para mil anos, que seria equivalente ao 1.º - medieval (o Sacro
Império) - que tinha durado de facto 1.000 anos: do ano 800, data da coroação
de Carlos Magno, a 1806.
6. Franco Nogueira (1918-1993) tinha sido
nomeado ministro em 4 de Maio de 1961, após a tentativa de golpe de Estado do
general Botelho Moniz, substituindo Marcelo Matias.
7. União que deu origem à actual Tanzânia
em 26 de Abril de 1964.
|