Nestes
anos recentes de instabilidade e crise financeira na Europa assistimos a uma
batelada de euros a serem transferidos para a Alemanha. Este fenómeno criou no
Banco Central Alemão (o Bundesbank) um gigantesco crédito em relação a outros
bancos centrais europeus. O que me pergunto é se isto constitui um risco
importante para a Alemanha ou se é uma mera questão contabilística. Pensar
neste assunto ajuda-nos a perceber o sistema financeiro e levanta a questão da
sua fragilidade. Para quem não é dos números tudo isto parece um pouco fictício
e numa coisa têm razão, tudo se resume à confiança no sistema. Ou a temos e
tudo correrá bem, ou não a temos e lá vai a construção de cartas para o
galheiro.
Há muito
que o sistema monetário do padrão-ouro deixou de ser usado e os governos, ou os
bancos centrais passaram a poder emitir tanto dinheiro quanto precisem.
Passamos então a usar a moeda fiduciária (fiat money), que é um termo
curioso (deriva da palavra latina fiat, que significa “faça-se”,
devido ao dinheiro ser criado por decisão de alguém). O valor de uma moeda
fiduciária é determinado pela quantidade que é emitida e por outros factores
que influenciam a procura de moeda, isto é, não depende do valor dos activos dos
bancos centrais. É neste aspecto que comparo o sistema com uma construção de
cartas, pode ser bonito e do mais interessante, pode-nos resolver o problema
melhor que qualquer outro, mas, convenhamos, é frágil.
Claro que
não estou a dizer que os bancos centrais desprezem as diferenças entre os seus
activos e os passivos, os chamados recursos próprios. A criação de moeda é uma
poderosa ferramenta da política monetária e naturalmente deve ser usada com o
maior rigor. Se imaginarmos, por exemplo, que um banco central concede
empréstimos a bancos insolventes e que depois os anule pela criação de
provisões, estamos perante a emissão de moeda à custa de toda a sociedade. Pela
delicadeza destes critérios de actuação, os bancos centrais dos países da zona
euro têm as suas contas regularmente auditadas e podem inclusive ser obrigados
a processos de recapitalização pelos governos respectivos se apresentarem um
valor dos passivos superior ao dos activos.
(continua)
Quando
olhamos para o Balanço do Banco Central Alemão há uma rubrica do activo que
merece especial atenção. Há um grupo de activos chamado “Activos sobre o
Eurosistema” onde se inclui a rubrica “Outros activos sobre o Eurosistema”.
Esta rubrica apresentava em 2007 um valor próximo dos 40 mil milhões de euros e
no final de 2012 tinha 655 mil milhões, mais de metade dos activos totais do
Banco, que rondavam os 1025 mil milhões. Este aumento representa a tal batelada
de euros, são perto de 20% do PIB alemão (para que se perceba a dimensão) que
foram transferidos para a Alemanha nestes anos, concretamente através do
sistema de pagamentos denominado Target2.
Parece-me
importante ter uma ideia de como funciona este sistema de pagamento Target2,
que foi criado para permitir as transferências de dinheiro entre contas de
bancos em países diferentes. Cada um dos bancos da zona euro tem uma conta no
banco central respectivo, constituindo assim um passivo deste. Quando alguém em
Portugal quer transferir dinheiro para a Alemanha, o Target2 assegura que a
conta desse banco no Banco de Portugal seja debitada e a conta do banco
destinatário no Banco Central Alemão seja creditada. É então necessário que
tanto o Banco Central Alemão como o Banco de Portugal ajustem os seus balanços
de forma que estas operações não tenham efeito nos seus recursos próprios. Uma
das maneiras possíveis seria o Banco de Portugal transferir para o Banco
Central Alemão algum activo com o valor da transferência. Claro que, na
prática, o que se entende não se faz isto, o Banco de Portugal cria um passivo
intra-Eurosistema (um passivo Target2) enquanto o Banco Central Alemão cria um
activo intra-Eurosistema (um crédito Target2). Os passivos Target2 estão
sujeitos a juros à taxa de refinanciamento do Banco Central Europeu que são
creditados aos bancos centrais que tenham os respectivos créditos. Em resumo,
os créditos Target2 geram o mesmo resultado para o Banco Central Alemão do que
outro qualquer activo que fosse obtido por uma normal operação de política
monetária.
Quando
analisamos a evolução da estrutura do balanço do Banco Central Alemão nos últimos
anos verificamos que, em especial desde 2010, o peso dos empréstimos concedidos
a bancos é cada vez menor, enquanto a percentagem dos créditos Target2 é cada
vez maior, excedendo já os 50% dos activos. Perante este cenário, a pergunta
que me surge é: e se houver uma crise forte no euro?
O euro é
uma moeda recente, começou a ser usada nos anos 1990 em transações comerciais e
a partir de 2002 como moeda corrente. Sentimos na pele os efeitos das políticas
seguidas na Grécia ou em Portugal, que independentemente da adesão à nova moeda
continuaram a gastar mais do que recebiam em impostos e lucros de empresas
públicas. Claro que estando agora impedidos de imprimir moeda restou-lhes a
solução de pedir euros emprestados a outros, e assim fizeram. Mas é evidente
que isto tem um limite e o resto da história já conhecemos, fomos aliás
incluídos no pejorativo acrónimo PIIGS, juntamente com a Itália, a Irlanda, a
Grécia e a Espanha, como o grupo de economias com maiores problemas de
endividamento edeficit público em relação ao PIB. Não interessa
agora se isto foi o resultado de políticas keynesianas a mais ou do encolher de
ombros dos bancos centrais, certo é que já nos fartamos de ouvir que o euro,
afinal, não terá sido muito bem pensado e que dificilmente uma moeda única
poderia servir 17 economias independentes. Não admira, com tudo isto, que uma
nova crise do euro não possa surgir um destes dias, pelo que mantenho a
pergunta: e o que acontecerá à Alemanha, que tem estes bilhetinhos que valem
euros no sistema actual no valor de 655 mil milhões de euros?
Podemos
falar na bondade da arquitetura do Eurosistema e do sistema de pagamento
Target2, mas o que acontece a estas coisas num cenário de completa ruptura do
Euro? Os mais crentes poderão dizer que nada de extraordinário aconteceria, que
os devedores do Target2 entregariam ativos do valor em causa aos respectivos
credores e que assim acabaria a história. Eu, que não sou tão crente, acho que
num cenário destes os devedores diriam qualquer como “olha se era a sério” e
deixariam de assumir os juros gerados pelos passivos Target2 e por certo se
recusariam, na confusão, a entregar qualquer ativo que compensasse
a dívida. E a Alemanha, ficaria com um buraco de 20% do PIB? Não, resolvia o
problema contabilisticamente!
Chamo a
atenção que não estou a falar deste cenário catastrófico como provável mas
apenas para identificar, a existir, o risco que incorre a Alemanha.
O Banco
Central Alemão, num cenário destes pós-euro, com um novo Marco (também
fiduciário, claro) ao serviço, teria então um buraco gigantesco no diferencial
entre os activos e os passivos do seu balanço. Faria então o que muitos de nós
gostaríamos de poder fazer, passava um cheque a ele mesmo do valor em causa e
anualmente outros mais pequeninos correspondendo aos juros. Simples!
Para quem
ache que o padrão-ouro tenha sido substituído por um sistema credível, com
algum suporte, poderá pensar que uma coisa destas seria fatal para a confiança
na nova moeda alemã, o que provocaria uma hiperinflação como há muito não
sabemos o que é na Europa. Pois, puro engano, reparem que este cheque seria
apenas emitido para compor o balanço do Banco Central Alemão, não alterando num
cêntimo a quantidade de dinheiro em circulação nesta Alemanha com um novo
marco. É que o valor de uma moeda fiduciária depende fundamentalmente da
confiança que todos tenham que o Banco Central limite a quantidade de dinheiro
em circulação. Aconteceria então exactamente o contrário, o novo marco
apreciar-se-ia em relação às restantes moedas e havia um risco sério de
deflação e não de inflação.
A
Alemanha é de facto dos países que mais sofreria se o euro deixasse de existir
porque a sua moeda (nova) teria uma valorização imediata o que teria dois
efeitos gravíssimos, por um lado as empresas exportadoras que deixavam
imediatamente de ser competitivas e por outro, talvez mais grave, é que os
bancos veriam os seus activos, muitos deles agora denominados em moedas mais
fracas dos restantes países da Europa, a não cobrir o valor dos passivos.
São evidentes os custos que o país teria com uma nova moeda extra-forte para
manter um sistema bancário solvente.
Curiosos
como funcionam estes sistemas financeiros e as moedas fiduciárias. A Alemanha
passava a ter um buraco de 20% do seu PIB no balanço do seu Banco Central e....
esse era o menor dos seus problemas.
Um
europeísta convicto pode achar este cenário um disparate. O Banco Central
Europeu é o garante do sistema financeiro e consequentemente responsável pelo
sistema de pagamento Target2. O BCE teria não só teria a obrigação de comprar
esses créditos como também de lhes assegurar o valor real. Por isso se
diz que são passivos reais, mais reais do que na situação em que tivessem ouro
como colateral. Pois eu acho tudo isto muito bonito, é bom ser e parecer sério,
mas sem a possibilidade de produzirem mais euros se estes acabarem, fazem isso
com que dinheiro?
1 comentário:
Vivendi,
O Bret ão, um outro risco a ter em conta.
http://www.dailymotion.com/video/x17b80n_pierre-yves-rougeyron-sur-l-etat-de-l-economie-bretonne_news
José**
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