..."Não estou comparando discursos, obras etc. Estou tratando de uma visão de mundo: a jesuítica, segundo a qual a pregação do Evangelho, em meio ao povo, é o “sal da terra”. Vieira e Bergoglio entendem que não há nada de errado com Deus ou com a doutrina. O problema está com os pregadores; o problema está com a Igreja. Cumpre notar, em todo caso, que, da segunda metade do século 17 a esta data, a Igreja não acabou, não é?
A Igreja, na sua doutrina essencial, e antimaterialista e, vá lá, anticapitalista, mas não, obviamente, socialista. Faço essa observação porque outra linha condutora da exortação de Francisco é, sim, a crítica ao capitalismo — especialmente nos parágrafos 55 a 60. Leiam este trecho:
“56. Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.”
Mais uma vez, se quiserem, podemos voltar a Vieira e a alguns de seus escritos sobre a escravidão. Que tal isto?
“Os Israelitas atravessaram o mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar Oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos (…). Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras, do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela, o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias!
Já se, depois de chegados, olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam seus senhores, o que se viu nos dois estados de Jó é o que aqui representa a fortuna, pondo juntas a felicidade e a miséria no mesmo teatro. Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferro; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos de extrema miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à fé, que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, vossa justiça e providência! Estes homens não foram resgatados com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”.
É um trecho do Sermão Vigésimo Sétimo, de 1688, um daqueles que o padre dirigiu à Comunidade Nossa Senhora do Rosário, composta de negros.
Por quê?
Faço essas observações para destacar que a proximidade da Igreja com os pobres, com os desvalidos, não é uma “modernidade” surgida com a Teologia da Libertação. O que essa corrente fez, isto sim, foi emprestar à tradição humanista da Igreja o viés marxista, como se a luta de classes fosse o único caminho de combate à desigualdade. Evidencio que o compromisso da instituição — ou de fatias importantes dela — com o combate às injustiças é antigo. Na verdade, está na origem do cristianismo. Ainda hoje, apesar de tudo, a Igreja Católica coordena a maior rede de assistência social do mundo.
Francisco não é, como, às vezes, se tenta vender aqui e ali, um papa contra a Igreja. Parece é que o jesuíta pretende uma Igreja menos apegada ao “paço” e mais apegada “ao passo”; uma Igreja que busque menos as culpas dos fiéis relapsos do que dos pregadores relapsos. Outras manifestações suas me desagradaram um tantinho. Esta não. Até porque valores que me parecem essenciais estão devida e inequivocamente explicitados"...
Reinaldo Azevedo, aqui
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