O primeiro tem que ver com o diagnóstico. O manifesto começa com algumas referências demasiado ligeiras e inconsequentes à especialização da economia portuguesa, à concorrência da globalização, à baixa produtividade e a outros problemas estruturais que têm, à primeira vista, pouco ou nada que ver com dívida pública. Concordamos que estas questões são problemáticas, mas não é nada óbvio a razão por que são invocadas neste contexto, nem em que medida poderiam ser debeladas com uma reestruturação.
Por exemplo, há alguma evidência de que o crescimento da produtividade está relacionado com learning by doing, e nesse sentido pode beneficiar imenso da troca de experiências proporcionada pelo Investimento Directo Estrangeiro (IDE). Mas também há evidência de que o IDE reage de forma muito negativa a episódios de reestruturação, o que sugere que uma reestruturação poderia facilmente reduzir a produtividade das empresas e aprofundar os problemas identificados no manifesto. De facto, a redução pronunciada da Produtividade Total dos Factores (TFP) foi precisamente o que aconteceu na Argentina em 2002.
Claro que uma reestruturação também libertaria recursos financeiros, que agora são usados no pagamento de juros, para aumentar as qualificações da mão-de-obra ou infraestruturas, o que podia aumentar a produtividade. Pois: podia. A questão é que há efeitos de sentido contrário a actuar ao mesmo tempo (como o caso do IDE), e o manifesto faz tábua rasa dos efeitos negativos, assumindo, sem discussão, que o efeito líquido seria positivo. Esquecer estas nuances e subtilezas e apresentar como facto consumado que a reestruturação aumenta a produtividade é um péssimo ponto de partida para uma discussão séria.
Em segundo lugar, o manifesto é, digamos assim, manifestamente vago em relação ao que efectivamente propõe. O que está em cima da mesa é uma reestruturação imposta (default puro e duro), ou uma reestruturação negociada? E que montantes, prazos e juros concretos é que estão ser oferecidos? Estas são questões técnicas, mas é em torno destes pormenores que a razoabilidade da proposta pode ser aferida. O diabo, nestas coisas, está sempre nos detalhes.
Comecemos por assumir que a proposta é de uma reestruturação negociada. Uma pergunta óbvia a que o manifesto teria de responder é o que ganham os credores com esta alteração, porque dificilmente se propõe um acordo bilateral em que só uma parte ganha e a outra se limita a perder. Um argumento muito utilizado é que Portugal já obteve uma reestruturação, e que este é um precedente importante. Ora, a lógica é precisamente a inversa. É exactamente porque Portugal já obteve uma melhoria muito substancial das suas condições de financiamento que o grau de tolerância dos credores a benesses adicionais já estará mais perto do limite.
Convém por as coisas em perspectiva. Desde o início do Programa de Ajustamento que Portugal já conseguiu reduzir a taxa de juro relevante em cerca de 2 pontos percentuais, aumentar a maturidade dos empréstimos em 15 anos e prolongar os empréstimos em mais sete anos adicionais. Tudo somado, esta é uma reestruturação surpreendentemente elevada. Só em juros efectivos o Orçamento português deve poupar qualquer coisa como 950 milhões de euros por ano (contas ‘costas de envelope’ utilizando o boletim do IGCP e dados da AMECO).
A título de exemplo, a reestruturação que teve lugar na Grécia, e que abrangeu menos de um terço da totalidade da dívida (ver detalhes em The greek debt reestructuring: an autopsy) foi uma das maiores de sempre (ver dados na base de dados de Trebesch). Reestruturações mais volumosas acontecem tipicamente em períodos de guerra (Bósnia, Moçambique) ou em Estados falhados (Iraque). Seria compreensivelmente difícil argumentar junto dos organismos europeus que, depois de todas as concessões que já foram feitas, Portugal deveria ser tratado (e comportar-se) como um país do Terceiro Mundo.
E se fosse uma reestruturação forçada? Dispensar a anuência das instituições europeias tornaria mais fácil ‘não pagar’, mas esta é mesmo a única vantagem em relação a uma reestruturação negociada. Entre os vários problemas destaco apenas os seguintes:
- Portugal tem uma dívida pública de cerca de 213 mil milhões de euros. Destes 213 mil milhões, cerca de 82 mil milhões são detidos pelo estrangeiro (a Troika detém 71 milhões), pelo que os restantes 130 mil milhões estão em mãos nacionais. Ou seja, o país, como um todo, não ganha nada em reestruturar cerca de 60% da sua dívida, já que aquilo que ganha enquanto contribuinte acaba por perder como investidor. Na prática, a renegociação só pode incidir sobre 40% da dívida pública.
- Pior ainda: Portugal tem, neste momento, um saldo primário (despesa sem juros) próximo do equilíbrio, mas o que é relevante é o saldo primário que resta depois de se pagar os juros aos agentes económicos nacionais. E esse saldo ainda é negativo (em cerca de 2000 a 3000 milhões de euros, dependendo dos cálculos). Trocando por miúdos, se Portugal quisesse honrar a sua dívida pública ‘interna’ e pagasse zero aos investidores externos, tentando com isso ganhar margem financeira para aumentar a despesa noutras rubricas, acabaria por descobrir rapidamente que as receitas continuavam a ser insuficientes para cobrir sequer as despesas actuais. Com o colapso de financiamento que inevitavelmente se seguiria, o Estado teria de reduzir ainda mais as suas despesas ou aumentar os impostos – precisamente o contrário do objectivo que o manifesto visa obter.
- c) Haveria um longo rol de problemas legais. Vale a pena referir que por muito menos do que isto o Reino Unido invocou legislação anti-terrorista para congelar contas bancárias islandesas, por exemplo. A Argentina continua, mais de uma década depois do seu default, presa em disputas jurídicas intermináveis (o repertório de casos inclui até uma insólita apreensão de navios em águas ganesas*).
- d) Como é óbvio, neste ponto a disputa não seria apenas financeira, económica e jurídica. Ostracizar os países europeus que emprestaram dinheiro a Portugal quando mais ninguém o fez poderia fazer com que o país fosse visto como um pária da na União Europeia, com repercussões políticas difíceis de prever. Alguém consegue imaginar como seria hoje Portugal se não tivesse aderido à CEE em 1986? A reversão dos progressos políticos e institucionais que decorreram dessa adesão não é fácil de imaginar, mas também não pode ser excluída.
O corolário é que a propagação pública da ideia de que a reestruturação é inevitável não tem qualquer real utilidade para Portugal: não melhora a sua posição negocial, não sensibiliza a Europa e nem contribui, sequer, para uma preparação atempada desse processo. Limita-se a gerar desconfiança nos investidores estrangeiros, fazer subir as taxas de juro e dificultar, objectivamente, a situação do país (em teoria, claro: na prática, parece que os mercados reagiram com alguma indiferença ao manifesto). Nestas coisas, o simples acto de publicar o manifesto não é neutro: ele acarreta, em si mesmo, consequências**.
* O caso argentino é interessante, não só pelas conclusões que permite retirar dos efeitos de um default mas também por aquilo que sugere em relação ao abandono de um regime de câmbios fixos. Para uma perspectiva optimista de uma eventual saída do euro sugiro The argentine success story and its implications.
** Parece haver uma dificuldade gritante por parte de muitos observadores em perceber o papel que a credibilidade tem numa situação de negociação em situação de incerteza. Grande parte das críticas à actuação do antigo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, resulta do facto de não se perceber que as concessões são como os aumentos salariais: não se exigem com ameaças, conquistam-se com trabalho.
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