Em 1871, Antero de Quental e proeminentes colegas de Coimbra, como Eça de Queirós, Manuel de Arriaga ou Teófilo Braga, decidiram realizar as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, tendo Antero proferido o discurso intitulado:
"Causas da decadência dos povos peninsulares"
Tive a oportunidade de comprar um exemplar em livro há uns anos num alfarrabista, tal era a minha curiosidade em conhecer o conteúdo, e, à luz dos factos recentes, são por demais evidentes as semelhanças daquela época com as da atualidade, tanto na realidade objetiva política como na análise que os intelectuais faziam da mesma. E por incrível que pareça, apesar de parecer uma eternidade, o espaço temporal entre elas não é assim tão distante.
Tanto naquela época como agora, a malta queixa-se do nosso atraso estrutural, das décadas sucessivamente perdidas, da corrupção, da mesquinhice, e por aí fora.
Antero de Quental faz uma tentativa de compreensão da história portuguesa quase desde a sua fundação, e faz a comparação entre o que éramos até ao século XVI (bons) e como passámos a ser desde aí (maus).
Para ele, as razões desta transição vão desde o progressivo distanciamento da classe política para com o povo, centralização do poder, ausência de massa crítica, tanto no plano filosófico como científico, depravação dos costumes desde o topo até cá abaixo mas sobretudo o aparecimento da Inquisição e da igreja formal, mecânica, impositora, etc, etc.
Segundo Antero, com a penetração dogmática e rígida da igreja católica nos costumes da população, o povo embruteceu e, embrutecendo, perdeu-se a esperança de voltarmos a ser a força criadora, instintiva, enérgica e científica com que nos caracterizáramos séculos antes.
Citando Antero de Quental:
" O catolicismo dos últimos três séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades."
Nos dias de hoje poderíamos também afirmar que a depravação moral e até social está em plena marcha; que a corrupção grassa em cada esquina de negócios públicos, e já agora, que os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, utilizando umas terminologias mais modernaças.
Mas acham que faz sentido atribuir nos dias de hoje as culpas pelas nossas "falhas" à igreja católica?
Não creio, e quer-me parecer que Antero de Quental e compadres também exageraram na atribuição de responsabilidades à Igreja.
Sendo agora má língua, parece-me até que talvez por terem sido demasiado urbanos, estrangeirados e românticos, lhes fosse impossível de suportar a força natural que a igreja católica exercia em todo o território.
Havia que atacar, e como?
Atribuindo-lhe a fonte geradora de todos os males da nossa suposta decadência como cultura.
E como corolário desta leitura errada da sociedade, temos o exemplo histórico do que tentou a I República impor à nossa cultura, nomeadamente pela mão de Teófilo Braga e Manuel de Arriaga (que coincidência) entre muitos outros, e como o povo sacudiu com indiferença as modernices desta gente, que lá porque sabia ler, escrever e contar, julgava saber o que era melhor para a vida do povo analfabeto.
Este, ignorando as questiúnculas políticas da elite lisboeta, assistiu impávido às lutas intestinas dos partidos, aos ataques odiosos entre os tais intelectuais que tudo julgavam saber, e usando do tempo como melhor arma, deixaram o regime cair de maduro. Touché!
Mas atenção, nem tudo são rosas na igreja católica. Há factos indesmentíveis, como a Inquisição e a manipulação moral que a igreja quis exercer nos costumes da população, mas daí a afirmar que a nossa cultura embruteceu e se depravou por causa da igreja acho um exagero.
Aliás, seria difícil de acreditar que a nossa cultura, demasiado livre, inteligente e local, se deixasse levar por uma doutrina geral e dogmática, excessivamente diferente daquilo em que nós já ingenuamente acreditávamos desde há séculos, tanto no plano teológico como na regulação dos costumes.
Quer-me aliás parecer que foi mais a igreja católica a vestir o casaco da cultura portuguesa do que os portugueses a vestirem o casaco da cultura católica, e a prova está na preservação quase intacta da nossa cultura até aos dias de hoje, em contraponto com a redução do peso social da instituição Igreja. Ainda restam umas tradições formais aqui e acolá, mas o povo português, ávido de coisas novas, deixou-se absorver por uma data de novos costumes e modos de estar na vida, quer tenha sido pela aproximação à Europa, aos EUA, ao Oriente, sei lá.
Hoje alguém se preocupa com o facto de a igreja não aceitar o divórcio livre entre duas pessoas? O pessoal casa e descasa pelo civil e está a andar de mota. Querem lá saber se a igreja concorda ou deixa de concordar, e no entanto, por incrível que pareça, os nossos comportamentos como povo e caldo cultural continuam os mesmos desde há séculos: enervamo-nos pelas mesmas injustiças, discutimos pelas mesmas coisas negativas, regozijamo-nos pelas mesmas coisas boas, arrependemo-nos ou não por aquilo que de mal fazemos, perdoamos ou não perdoamos pelos mesmos motivos de sempre. Não conseguimos dizer Não quando sabemos que estamos a desagradar alguém, da mesma maneira que o sim diz-se por tudo e por nada.
É assim agora e era assim há 600 anos, ou acham que não?
Sinceramente, a força da nossa cultura, que é permanentemente salpicada por estrangeirismos, parece que tem carisma suficiente para influenciar MUITO mais do que ser influenciada, e porquê?
Porque é mais equilibrada do que as outras. ponto final.
Porque é menos fanática do que as culturas que se apoiam na rigidez protestante, judaica ou budista.
Porque é mais tolerante com as culturas que civilizacionalmente estão ou estavam mais atrasadas do que nós. E assim granjeamos amizades com toda a gente, sem sermos demasiado altivos nem demasiado submissos.
Era o Olavo de Carvalho que dizia, acho eu, que o Brasil católico dos portugueses é uma obra de tolerância étnica muito mais aperfeiçoada do que o protestantismo inglês dos EUA.
Mas mesmo assim, e à semelhança do que aconteceu em 1871, os intelectuais de hoje da nossa praça não foram estudar como analisavam e reagiam os intelectuais de outras épocas, bem como os erros de análise que cometiam, logo, é vê-los aí a não se cansarem de referir que não prestamos, que o resto da Europa é que é boa, que somos isto, que somos aquilo, que estamos a degenerar para aqui e para acolá.
Felizmente que há visionários como Agostinho da Silva que souberam não entrar no pântano da maledicência e na avaliação de vistas curtas dos nosso comportamentos, recorrendo ao estudo e à análise para conceber uma ideia do que é a maneira de ser do português. Isto sim, é ser corajoso, é ser sonhador, é fazer o que mais ninguém fez contando com tão pouco para o fazer. Isto sim, é ser português.
Na minha opinião, se é mesmo verdade que o português está efetivamente a degenerar para aqui ou para acolá, conforme nos querem convencer, tal deve-se à permanente importação de ideologias políticas e instituições estrangeiras que, desde a monarquia absolutista (aí concordo com os intelectuais de 1871), nos querem obrigar a vestir um casaco que verdadeiramente não nos serve, e portanto, arranjamos as maneiras mais bizarras de nos enfiarmos lá dentro, como no caso mais recente da social-democracia, por exemplo.
Acham mesmo que a Democracia e o Estado como corpo único e nacional, bem como as mega instituições super gerais que não têm em conta as vicissitudes de cada região e de cada comunidade verdadeiramente nos servem? Duvido.
Basta-me saber que tais ideologias políticas ou vieram de protestantes metódico-racionais do norte da Europa ou de devassos românticos liberais franceses como Rousseau para ficar logo desconfiado. LOGO!
Andamos há séculos à procura de uma identidade política que sirva a nossa cultura, mas chiça, não está fácil, e a porra da adesão à CEE ainda veio baralhar mais a nossa escrita.
Tiago Mestre
1 comentário:
Excelente.
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