terça-feira, 25 de junho de 2013

Caos e estratégia


Por Olavo de Carvalho,

Nossos liberais e conservadores lêem Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek e, vendo que eles tratam o marxismo como uma pseudo-ciência econômica, concluem alegremente que ele não vale nada, não merece maior atenção. Acontece que o marxismo enquanto ciência e técnica da ação revolucionária não depende em nada da “base econômica” que nominalmente o sustenta. 


Essa ciência e essa técnica são de uma exatidão assustadora e não podem ser compreendidas só com a leitura dos “pais fundadores” do movimento ou com a da sua crítica liberal: requer o acompanhamento de toda uma evolução do pensamento estratégico marxista, que começa com Marx e se prolonga até Saul Alinsky e Ernesto Laclau. Este último, invertendo a fórmula clássica das relações entre “infra-estrutura” e “super-estrutura”, propõe abertamente a tese de que a propaganda revolucionária cria livremente a classe da qual em seguida se denominará representante. Maior independência de toda “base econômica” não se poderia conceber. Aqueles que imaginam ter dado cabo do marxismo tão logo refutaram seus princípios econômicos se acreditam muito realistas, porque eles próprios são crentes devotos da “base econômica” do acontecer político, a qual os próprios marxistas já superaram há muito tempo. O marxismo deve ser estudado, em primeiro lugar, como uma “cultura”, no sentido antropológico do termo. Remeto os interessados a três artigos em que resumo o que penso a respeito :

http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm

http://www.olavodecarvalho.org/semana/040101jt.htm 

http://www.olavodecarvalho.org/semana/040108jt.htm

Em segundo lugar, deve ser estudado como ciência e técnica da ação revolucionária, da intervenção ativa da elite revolucionária na sociedade e na história. Essa ciência é tão veraz, e a técnica que nela se arraiga é tão eficiente, que delas resulta este fato, tão fundamental entre todos e tão solenemente ignorado pelos críticos do marxismo: há pelo menos um século e meio o comunismo é o único – repito: o único – movimento político organizado unitariamente em escala mundial e dotado de uma consciência clara da sua continuidade, bem como das suas metamorfoses estratégicas. Todos os seus pretensos adversários e concorrentes são fenômenos locais, inconexos e passageiros, espalhados no tempo e no espaço como grãos de poeira soltos no vento, incapazes não só de fazer face ao rolo compressor do movimento comunista, mas até de enxergá-lo como um todo.

Sem nenhuma presunção de expor aqui o fenômeno no seu conjunto, mas raciocinando antes em função exclusiva dos últimos acontecimentos no Brasil, destaco adiante alguns pontos que, se não forem levados em conta, tornarão inviável qualquer tentativa de compreender os lances mais recentes da história continental e nacional.


O primeiro desses pontos é o seguinte: nenhuma ação comunista tem jamais – repito: jamais – um objetivo único e linear. Todas as decisões do comando estratégico comunista são sempre de natureza dialética e experimental. De um lado, jogam sempre com uma multiplicidade de forças em conflito, não interferindo jamais no quadro antes de ter uma visão bem clara das contradições em jogo e dos múltiplos sentidos em que elas podem ser trabalhadas. Sob esse aspecto, o pensamento marxista não mudou muito desde o começo. 


Apenas aprimorou formidavelmente a sua visão das contradições, integrando no seu retrato mental da sociedade inúmeros tipos de conflitos novos que ou não existiam no tempo de Marx ou ele não julgou relevantes; por exemplo, o conflito entre os impulsos sexuais e a ordem social, ou entre pais e filhos. De outro lado, a essa visão dialética cada vez mais sutil e aprimorada o marxismo acrescenta o caráter experimental e não dogmático de todas as suas decisões e ações estratégicas. A articulação de dialética e experimentalismo permite que as ações do movimento comunista se beneficiem, por um lado, de uma multiplicidade de direções simultâneas que desnorteiam o adversário, e, por outro, de uma capacidade de agir por avanços e recuos mediante contínuas e não raro velocíssimas mudanças de rumo. 

Quem quer que, ao analisar a recente explosão de protestos, concentre sua atenção nas reivindicações nominais – redução das tarifas de transporte público, “mais educação”, “mais saúde” etc. – para discutir sua justiça e viabilidade já prova, só nisso, sua total incompetência para lidar com o assunto. Mas quem quer que, furando essa primeira barreira de aparências, procure encontrar por trás delas um objetivo determinado e único que explique o conjunto, se engana talvez ainda mais desastrosamente.


Se os protestos têm um objetivo político determinado, este só é definido, na mente dos seus planejadores estratégicos maiores, em termos muito gerais e vagos. Gerais e vagos o bastante para admitir, a cada momento, novas e – para o adversário – imprevistas mudanças de rumo.


Tomando como ponto de partida o fato de que “o movimento” teve como seus criadores e mentores o Foro de São Paulo e a elite globalista condensada simbolicamente na pessoa do sr. George Soros, o seu objetivo geral já foi declarado muito antes de que o movimento eclodisse e não requer nenhum esforço especial de interpretação. Trata-se, em resumo, de encerrar a fase “de transição” e partir para a “ruptura” ou destruição ativa de um “sistema” já cambaleante e debilitado pela onipresente “ocupação de espaços”. Os slogans escolhidos para instigar a massa não têm, em si, a mais mínima importância. Podem ser trocados a qualquer momento, conforme o rumo que as coisas vão tomando. A técnica da mutação também não é rígida, mas adapta-se velozmente a uma conjuntura em constante transformação; transformação que o próprio movimento acelera por sua vez. Não se trata, portanto, de alcançar este ou aquele objetivo concreto em particular, mas de operar com um leque de possibilidades em aberto e conservar, na medida do possível, algum controle do conjunto.


Essas possibilidades são exploradas simultaneamente e, conforme uma ou outra se revele mais viável ou mais problemática, será intensificada ou refreada pelo comando do processo. As mais importantes, a meu ver, são as seguintes:


(a) Trocar a própria liderança visível da esquerda, substituindo os agentes da “transição” pelos agentes da “ruptura”, decididos a ações mais drásticas.
(b) Espalhar o caos para justificar medidas de força, aproveitando para, no mesmo ato, testar os “agentes de transição”: se conseguirem controlar repressivamente a situação e aumentar o poder do grupo dominante, sobreviverão; caso contrário, serão trocados.
(c) Incitar à ação pública as forças antagônicas (cristãos, patriotas, conservadores etc.), para mapeá-las e averiguar as possibilidades de controlá-las ou extingui-las.
(d) Caso a evolução do movimento se mostre majoritariamente favorável aos objetivos dos planejadores, fomentá-lo ainda mais para que a própria ação da militância enragée adquira autonomia e conquiste autoridade por si própria, transmutando-se em nova estrutura de governo.


Esta possibilidade, a mais ostensivamente “revolucionária”,.parece já ter sido excluída, na medida em que as forças antagônicas, malgrado sua total desorganização e ausência de comando, se mesclaram ao movimento, ocuparam as praças públicas e acabaram, em certos casos, por acuar e sobrepujar a militância esquerdista.


O próprio comando da esquerda militante ordenou que as manifestações cessassem, o que imediatamente deixa o campo livre para as massas antagônicas e favorece, ipso facto, a adoção da via repressiva para estrangular a ameaça de um “golpe teocrático e fascista”. Se esse estrangulamento tomará a forma de uma repressão policial violenta ou de um simples incremento do aparato de investigação e controle social, é cedo para dizer. 


O detalhe mais importante, aí, é que as forças antagônicas se constituem exclusivamente de massas amorfas e desorganizadas, sem o mais mínimo comando estratégico e até sem aquelas figuras de heróis improvisados que um erro terminológico denomina “líderes”, quando o certo seria chamá-los apenas de “símbolos aglutinadores”. Essa massa é numericamente superior, seja à militância organizada do Foro de São Paulo, seja às tropas de arruaceiros subsidiadas pelo sr. George Soros. Sua presença nas ruas, bem como a vaia multitudinária que despejou sobre a presidenta Dilma Rousseff, são, no sentido mais estrito do termo, explosões espontâneas e anárquicas no mais alto grau, contrastando, nisso, com a ação bem planejada dos militantes do outro lado, que ocupam o espaço público armadas de instruções precisas, de slogans bem ensaiados (em Brasília, viu-se até o texto de uma convocatória inteira recitado em côro pela multidão). Desse modo, o que se viu nas ruas não foi uma competição entre forças de um mesmo gênero – duas militâncias, duas ideologias, duas forças políticas –, mas entre dois tipos de multidão radicalmente hete
rogêneos: a massa e a militância, a revolta confusa e a ação premeditada.


Quem não levar em conta esses fatores não entenderá absolutamente nada do que está acontecendo e estará privado até da mera possibilidade teórica de uma ação consequente.


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