quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A austeridade que a extrema esquerda portuguesa não dá a conhecer...



É aí que nasce o interesse pela história? Vai pouco depois para a URSS, para estudar a história do país.

Fui para a União Soviética porque a minha família não tinha possibilidades para eu estudar em Portugal, embora tivesse notas boas.

Foi com algum tipo de apoio?

Era militante da União dos Estudantes Comunistas e eles ofereceram-me uma bolsa para estudar num país socialista.

É por isso que fica em Moscovo e não em zonas mais interiores da URSS?

Nesse sentido, tive muita sorte. Nem tinha escolhido a União Soviética. Escolhi Cuba, Bulgária e República Democrática da Alemanha. Mas o destino foi bom para mim, mandou-me para Moscovo e não para aquelas cidades mais distantes, onde as dificuldades eram muito maiores do que as que tínhamos em Moscovo.

Fala-se num país muito pobre nesse tempo. Que realidade encontrou?

Eu ia para a União Soviética ver como o comunismo estava a ser construído. Claro que, quando somos jovens e chegamos, não damos conta de tudo o que as coisas são. Vemos coisas más mas dizemos que são imperfeições. Ao ver na rua uma pessoa que lhe quer comprar as calças de ganga que traz vestidas pensa que eles vivem tão bem que o único problema que têm é não ter calças de ganga. Eu e outros raciocinávamos assim.

Depois passou a ver as coisas com outros olhos?

Depois percebemos que havia falta de calças de ganga e de muitas outras coisas. Não era só o facto de os soviéticos não terem acesso a determinadas coisas que para nós eram absolutamente normais já em 1977. O país que manda foguetões para o espaço não consegue fabricar calças de ganga? Alguma coisa aqui está mal.

Hierarquização de prioridades?

Na hierarquização, partindo do princípio de que o socialismo tem o homem como centro e principal preocupação, isso deve estar no topo da hierarquia - criar boas condições de vida. O acesso à educação era bastante fácil, a instrução era razoável nuns campos, mas noutros era má. Como aluno da Faculdade de História tive dos melhores professores na área, mas tínhamos disciplinas completamente aberrantes - o Comunismo Científico, o Ateísmo Científico. Tínhamos de aprender a provar que Deus não existe.

Foi isso que levou ao fim do projecto socialista na URSS?

Começa-se a ver que a realidade e a ideologia são coisas diferentes. Quando saí de Portugal, não sabia o que era aquilo que em russo chamam nacionalidade. Eu era português. Branco, amarelo, azul, não interessa. Sou português e é tudo. Lá começamos a ver que existem judeus, que não podem frequentar algumas faculdades da Universidade de Moscovo. São discriminados em determinados sectores, existem povos que têm problemas de igualdade, outros que pensam de maneira bastante negativa em relação ao sistema e se sentem oprimidos. Isso é fruto de uma realidade mais avançada, quando se entra na sociedade. Para mim foi muito educativo quando comecei a ter filhos. Não havia fraldas de papel, só de pano. Tínhamos de lavar, desinfectar, cosendo-as no fogareiro.

Não havia fogões?

Havia, fogareiro é só um termo que uso. A comida para as crianças, que se vende em qualquer loja, não havia. E outras coisas elementares que uma superpotência deveria ter e não tinha. À medida que vamos avançando vemos que há diferença de classes, que a nomenclatura tem uma vida diferente da vida do povo. Uma grande parte dos militantes do Partido Comunista com quem contactávamos estavam no partido para fazer carreira e não porque queriam construir o que quer que fosse. Queriam um lugar quente e os privilégios que daí advinham.

Ficou desiludido com a construção do comunismo que encontrou?

Sem dúvida que sim. Não sou daqueles que previram o fim da União Soviética, nem tão depressa como foi. Comecei a acreditar que se desintegraria mais rapidamente do que aquilo que aconteceu em 1989, 1990. Até lá ainda pensei que havia possibilidade de reforma do regime. A partir 89 já não havia ilusões de que o regime comunista estava completamente podre e o país estava em vias de desintegração. Mas é um processo de que nos vamos apercebendo pouco a pouco. Tive professores que não escondiam determinados períodos da história soviética, embora não dando a dimensão catastrófica que eles tiveram, como foi o caso do estalinismo. Veio a saber-se mais tarde da violência, da repressão. Mas já davam a entender alguma coisa. E claro que qualquer pessoa sentia a falta de liberdade de expressão, de pensamento, de imprensa. Só quem não queria ver é que não via.


O blog de José Milhazes; da Rússia

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