terça-feira, 6 de novembro de 2012

Preço de eletricidade: um mistério muito bem guardado

Tendo sido inspirado pelo vazelios para escrever mais sobre a energia, e já que o blog Ecotretas está parado, tentarei expor a minha visão sobre este tema tão complexo à luz da cultura geral, tão obscurecido pelos media/políticos mas de vital importância para a manutenção da nossa civilização.

O post é mais longo do que o normal, mas para se perceber qq coisa tem mesmo que ser assim.


Antes do advento das energias renováveis, a PRODUÇÃO de energia elétrica era assegurada sobretudo por fontes de energia não renováveis, ou pouco renováveis, mas facilmente controláveis, com recurso ao carvão, ao gás natural e à água armazenada em albufeiras. Eram essencialmente estes três tipos de recursos que tínhamos à nossa disposição. Carvão e gás natural importados e a água recurso endógeno.

As centrais a Carvão são muito lentas a arrancar, a acelerar, a travar e a parar a sua produção de energia elétrica, pelo que se recomenda a sua utilização durante 24 horas por dia, parando apenas para manutenção/reparação. Há duas em Portugal e estão instaladas em Sines (EDP de Sines) e em Abrantes (Central do Pêgo - Endesa). Ambas consomem carvão que é importado por via marítima e descarregado no porto de Sines. Há um comboio de transporte de carvão que se realiza todos os dias entre Sines e Abrantes.

As centrais a Gás Natural são muito mais rápidas em todos os seus ciclos de operação em comparação com de Carvão, pelo que podem ser desligadas durante a noite, quando há menos produção, e ligadas de madrugada quando o consumo começa a aumentar.
Existe a Central da Tapada do Outeiro perto de VN Gaia, outra na Figueira da Foz e outra no Carregado. 

Ainda existe uma central termoelétrica em Setúbal que recorre a Fuelóleo, sub-produto da refinação do petróleo, mas que por motivos ambientais é utilizada em muito menor escala. Presumo que já nem sequer funcione de forma regular. Com a desativação progressiva destas centrais a fuelóleo que havia pelo país, é possível afirmar hoje que em Portugal não se gasta 1 barril de petróleo na produção de energia elétrica

As Centrais Hidroelétricas (Barragens) são as mais rápidas de todas nos seus ciclos de operação. Em minutos, senão segundos, é possível oferecer mais ou menos potência em função das necessidades dos consumidores, bastando abrir mais ou menos as comportas.
Estão espalhadas sobretudo no Norte do País, havendo mais algumas no Centro e apenas a do Alqueva no Alentejo.
A que possui maior potência instalada é a do Alto Lindoso (900MW), "enfiada" entre a Serra da Peneda e a Serra do Gerês. A sua albufeira entra por Espanha adentro, tendo sido necessário "trasladar" uma aldeia espanhola para que Portugal beneficiasse deste aproveitamento hidroelétrico.
O mesmo aconteceu com a barragem do Alqueva no Alentejo a propósito da Aldeia da Luz, contudo a potência máxima do Alqueva é pouco mais de metade (520 MW) da do Alto Lindoso.

Toda a produção de energia elétrica é injetada na rede elétrica nacional que cobre todo o território continental, e portanto os consumidores localizados em Faro podem estar a usufruir da produção de energia elétrica da barragem do Alto Lindoso na serra da Peneda-Gerês. A partir do momento em que a eletricidade produzida pelas centrais é injetada na rede, esta desloca-se à velocidade da luz para os consumidores que naquele instante estão a pedir energia elétrica.

A energia elétrica não é armazenada em lado algum. A partir do momento que é produzida, é instantaneamente consumida pelas lâmpadas, motores e televisões que naquele dado instante estão a trabalhar. Não é tecnicamente possível armazenar energia elétrica à luz da tecnologia que hoje possuímos. Face a esta limitação, optou-se por criar reservatórios onde se armazenam os recursos mais ou menos renováveis, como a água em barragens, e os fósseis, como o carvão e o gás em grandes reservatórios. Desta forma é possível garantir o abastecimento de energia elétrica para alguns dias, senão meses, e em função dos consumos estimados ao longo do ano, é também possível prever com bastante fiabilidade qual será o consumo amanhã, no Sábado, no feriado x ou na noite da passagem de ano. Há registos estatísticos e históricos em que a REN se baseia para prever qual será o consumo elétrico no futuro próximo. Desta forma, pode informar com alguma antecipação as várias centrais elétricas se terão que trabalhar 24, 12 ou 6 horas no próximo dia, na próxima semana ou no próximo mês.

É assim que a energia elétrica é produzida e consumida no mundo inteiro. Para a REN existem mais algumas variáveis na definição de quem irá produzir energia amanhã, como por exemplo o nível de água das albufeiras, a previsão meteorológica, a capacidade de transporte das linhas elétricas, etc, etc.
No final de contas, o que nós queremos é acender a luz quando acordamos de manhã e ter a certeza de que a energia está lá à nossa espera. Para que isto ocorra há toda uma infra-estrutura montada que assegura o máximo de eficiência e o mínimo de cortes no fornecimento.

Normalmente, o consumo durante a noite é metade do consumo durante o dia, pelo que na fase do amanhecer e do anoitecer há todo um conjunto de centrais elétricas que ora estão a aumentar a sua produção ora a reduzi-la. Outras haverá que estão sempre a trabalhar, nunca param, tipicamente as de carvão, pela sua inércia que já falei acima.

A título de curiosidade, as centrais nucleares são aquelas que conseguem produzir mais energia elétrica, já que a densidade energética do plutónio ou do urânio é milhares de vezes superior à do carvão ou do gás, mas também são as mais lentas de todas a arrancar e a parar.
Não se recomenda que estas centrais operem dessa forma. Quando entram em operação, é para trabalharem durante 30 anos com o mínimo de interrupções possíveis.

Na década de 2000, as energias renováveis começaram a ganhar cada vez mais adeptos, e fruto de muito estímulo político, entraram em força em Portugal, na Alemanha, nos Estados Unidos, em Espanha, e em muitos outros países.

A energia fotovoltaica teve um forte impulso político, mas rapidamente se percebeu que não teria condições para singrar no mundo da produção massiva de eletricidade. São necessários muitos milhares de painéis para se conseguir produção que se veja, com custos de instalação e de operação de tal forma elevados que os parques instalados pouco passaram de projetos-piloto. Hoje em dia, a produção de energia elétrica com recurso aos painéis fotovoltaicos não representa nem 1%  na produção de energia em Portugal. Só o facto de toda a eletricidade produzida nos painéis ter que ser transformada de corrente contínua DC para corrente alterna AC, exige a instalação de inversores DC/AC que simplesmente rebentam com qualquer orçamento.

Com as eólicas o caso foi diferente, já que era possível instalar muitas torres eólicas numa área relativamente reduzida, com potência bastante assinalável mesmo com vento a baixas velocidades, e a energia é logo produzida em corrente AC e injetada diretamente na rede, dispensando os caros e pouco fiáveis inversores DC/AC de que carecem os painéis fotovoltaicos.
Contudo, o investimento continuava a ser economicamente pouco vantajoso, já que estes projetos tinham que concorrer com a venda de energia pelas centrais convencionais, e o preço a que estas vendiam a eletricidade à REN era muito baixo para tornar os projetos das eólicas rentáveis.
Então e o que é que Manuel Pinho e Sócrates fizeram?
Resolveram em 2005 subsidiar os produtores de energia eólica. Em vez de se lhes pagar 5 cêntimos por kWh produzido, pagar-se-ia 10, por exemplo. Os investidores gostaram da ideia e avançaram em força.
Paralelamente fez-se um rastreio dos locais em Portugal onde o vento oferecia melhores condições e em função destes estudos abriram-se concursos para a instalação dos parques eólicos que hoje todos conhecemos.
Ao princípio tudo parecia correr bem, já que a produção de energia elétrica a partir do vento era residual e portanto não afetava a gestão da produção convencional de energia elétrica. Fazíamos boa figura internacional e éramos vistos com um case-study mundial.

Mas à medida que mais e mais centrais eólicas entravam em operação, maior era a dificuldade em prever se este ou aquele parque eólico poderia assegurar a produção que se estimava necessária para o dia x da semana y. É que o vento sopra em média 25% do tempo e sobretudo à noite, a a partir do momento em que se decidia que se iria recorrer à produção de energia elétrica pelo parque eólico A em detrimento da Central Térmica B, já não era possível voltar atrás.

O problema foi-se avolumando, e quando os parques eólicos atingiram uma determinada capacidade instalada tornou-se necessário definir critérios mais apertados para que não se corresse o risco de não haver energia elétrica caso faltasse vento em determinado dia.
Basicamente, pediu-se às centrais térmicas que ficassem em modo backup, estando prontas para arrancar caso houvesse essa solicitação.

Moral da História:
Se já estávamos a pagar a subsidiação das eólicas, passámos também a pagar para que as térmicas ficassem ao ralentim, à espera de serem chamadas caso o vento não aparecesse. Passámos a pagar quase duas vezes pelo mesmo serviço.

Gente houve que se apercebeu deste enorme acréscimo de custos, como foi o caso do Eng. Jorge Vasconcelos, ex-presidente da ERSE, tendo exercido funções nesta entidade desde o final da década de 90, se a memória não me falha, até Manuel Pinho, Ministro de Sócrates, o afastar em Dezembro de 2006.
E porque é que Pinho o afastou?
Porque Vasconcelos iria sugerir numa Comissão Parlamentar que o preço da eletricidade teria que subir 15% em 2007 face a 2006, em função do acréscimo de custos que já se faziam sentir com esta história das eólicas.
Pinho demitiu Vasconcelos e apenas aumentou o preço da eletricidade em função da inflação, tendo dado início ao défice tarifário, ou seja, recorria-se à emissão de dívida para pagar a subsidiação das eólicas.

Pois é, usou-se o expediente do costume: emite-se dívida para que o problema não venha à superfície.
E assim foi em 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e... 2013.
Com esta história de emitir dívida para pagar défices, o valor total da dívida já ascende a 3,4 mil milhões de euros, à ordem de 600 a 800 milhões € por ano.

O próprio secretário de Estado do Álvaro já veio dizer há 2 semanas que o preço da eletricidade em 2013 ainda não irá refletir o défice tarifário de 2013, quanto mais a dívida que já vem de trás. Uma autêntica bomba-relógio.

Ninguém quer mexer nesta batata quente, mas algo já foi feito:
O Álvaro já renegociou com a EDP e restantes empresas que detêm centrais térmicas em Portugal os termos de alguns contratos. Fê-lo de forma quase unilateral, e arrisca-se a não ter a Central do Pêgo no Inverno, como ameaçou o presidente da ENDESA em Portugal em Abril deste ano, já que os novos termos não são aceitáveis para a rentabilização da Central.
Mas nas eólicas nada se fez e já há a promessa de que o défice tarifário em 2013 será de mais 800 milhões euros, adicionando mais esse lindo valor à dívida acumulada desde 2007.

No dia ou no ano em que este valor tiver que ser "descarregado" nos consumidores, o aumento do preço da eletricidade não será nem 10, nem 20 nem 30%.
Vou mandar uns valores ao ar:
- 30% de aumento ano após ano durante os próximos 5 anos ou,
- 25% de aumento nos próximos 10 anos.

Enfim, algures no tempo, os 4, 5 ou 6 mil milhões de dívida terão que ser descarregados nos consumidores, já que o Estado nem dinheiro tem para mandar cantar um cego.

Espero ter ajudado na elucidação deste assunto, e farei brevemente outro post na tentativa de vos dar dicas de como nos deveremos proteger da enorme pancada que está por vir.

Obrigado por terem lido até ao fim!

Tiago Mestre

7 comentários:

Sérgio disse...

A verdade assusta, e de que maneira. Excelente texto, aguardam-se ansiosamente as dicas para "amortecer" a pancada que aí vem!

Nuno disse...

Há mais uma central de ciclo combinado a gás no Pego ao lado da central a carvão e Alqueva vai ter mais dois grupos brevemente, pelo que vai duplicar a capacidade.

Tiago Mestre disse...

Nuno, os 520 MW do Alqueva já incluem os 2 grupos novos reversíveis.

No Pêgo é que desconhecia haver central a gás de ciclo combinado. Obg

Ricardo Anjos disse...

Bom resumo Tiago,

Faltou no entanto explicar a correlação da energia eólica, com a energia hídrica:

A energia eólica, é uma energia intermitente tendencialmente contra-cíclica. i.e. tende a produzir mais, quando o consumo da rede é menor (à noite) e produz muito pouco durante os picos de consumo (durante o dia). Com o pretexto da bondade das eólicas, arranjou-se solução para o problema (das eólicas está claro) que passo a descrever:
As barragens foram equipadas com bombas, para durante a noite, bombearem < de volta para as albufeiras. De dia turbinam...
Aqui há vários problemas dos quais destaco dois... um de ordem técnica (devido a que todas estas operações terem rendimentos baixos - cerca de 65%) e financeira - o que acontece, é que a EDP compra a energia eólica nocturna a 0,01€/KW, e vende-a de dia a 0,08€/KW. Esta é a principal razão do interesse em continuar a construção de barragens pela EDP.
O pior de tudo é que nós os contribuintes pagam uma tarifa fixa aos produtores eólicos(leia-se subsidia os produtores eólicos) independentemente do que se faça com a energia. depois, pagamos a energia que consumimos à EDP (grande parte importada de origem nuclear), e pagamos a infra-estrutura (como linhas de transporte de alta tensão dos parques eólicos!!!
Para informação mais completa ver posts do ecotretas: http://ecotretas.blogspot.pt/search/label/energia%20eólica vale bem a pena perder uma hora a ver como fomos enganados estes últimos 6 anos...

Anónimo disse...


EXCELENTE TEXTO, TEXTO DE MESTRE!

OBRIGADISSIMO TIAGO MESTRE!

vazelios disse...

Tiago excelente texto, obrigado pela explicação. Vou passar para o segundo.

É de facto escandaloso isto acontecer e ainda pior acontecer e a imprensa não reportar às populações.

Mais uma vez fala-se do que não interessa. O fundo da questão nem vê-lo

Ainda Sei Escrever Português disse...

Uma vergonha. Tão grave como a quantidade de ovelhas que "aderiram" ao Aborto ortográfico cegamente.